GilmarJunior

Textos de minha vida.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Nem carnaval, nem Copa - por Gilmar Luís Silva Júnior, em 23 de fevereiro de 2006.

No século XV, o Brasil era a personificação do paraíso. Uma sociedade formada por almas encarnadas pelo mito do bom selvagem. Uma terra não crivada pelas artimanhas da civilização. O depositário ideal para mentes carcomidas pelas doenças sociais.
Os anos passaram céleres e os desatinos, plantados paulatinamente pelos europeus, frutificaram e conceberam a segunda sociedade mais desigual do planeta no quesito distribuição de renda. Um país continental, mas unido por ardis tão seculares e, por isso, enraizados no imaginário popular. Do Monte Caburaí (o ponto mais setentrional do Brasil) até o Chuí (o mais meridional), todos os estratos sociais se valem de olhos oblíquos, de sussurros módicos cheios de malícia e de um cinismo dramatúrgico para edificar o propalado “jeitinho brasileiro”. Desde a tenra idade, aprende-se a burlar o olhar inquisidor dos professores e, assim, granjear boas notas no colégio. O detentor de bons dribles e de chutes portentosos atrai para si a esperança e o arrebatamento de uma nação. Já os parcos universitários que conseguem o diploma não merecem tamanho tento. Para eles, resta uma disputa insensível no mercado de trabalho, sendo costumeiramente ultrajados com remunerações exíguas.
O Brasil vive um desatino de prioridades. O país mergulha numa letargia de poucos dias de festa, quando na época de Carnaval. Ou se transmuta nos pagos da Esperança, em momentos de Copa do Mundo. No restante do ano, o que se vê é uma refrega do povo com o governo, que só é ruim e incompetente com o aval quase divino das massas.
Anualmente, nenhum mês é tão aguardado como fevereiro. O céu desnudo da grande nação brasileira parece ser a cortina para o espetáculo da folia, que embebe a maior parte dos cidadãos de bem (e aqueles assumidamente ruins também). Gastam-se três ou quatro meses para a confecção de carros alegóricos, que alegram os olhos de quem vê e enchem de orgulho o coração de quem os concebeu. Os olhos circundados de manchas arroxeadas não teimam em esconder a fadiga de noites em claro. Tudo menos isso: a fadiga é um sinal de altivez perante os membros de uma escola de samba. “Cheguei a passar fome para comprar a fantasia”, uma frase de inculcado disparate, mas muito em voga durante a folia do Carnaval.
Passam os dias mágicos e o brasileiro cai nos dias medíocres de março. Começam as aulas e toda sorte de subterfúgios e técnicas para se obter uma singela vaga no ensino público (fundamental ou médio). A massa, que era só sorrisos na Sapucaí, xinga, brada e esperneia. Frases de falso teor político brotam da boca desdentada de muitos brasileiros: “o governo não constrói escolas”. Ficar na fila por amor aos filhos é sacrifício, assim encarado quando fora da magia de estar horas esperando para entrar num estado de apoteose carnavalesca. O povo reclama alguns dias e o ritual anual se completa: nenhum político corrupto foi demovido das polpudas tetas da política, situação que, mais cedo ou mais tarde, levará a Terra de Vera Cruz à bancarrota. O brasileiro, sem pestanejar, dispara: “político não presta”, senta-se no sofá (se o tiver) e arqueia as sobrancelhas, solene. Assim feito, livra-se da responsabilidade durante boa parte do ano. Dói demais pensar no cotidiano funesto: deixe essas contendas para mentes que não passam por tantos percalços.
Outro momento em que os malefícios de ser pobre e subdesenvolvido são olvidados é a época de Copa do Mundo. Músicas, jingles, bandeirolas, o verde-amarelo: a moda segue esses preceitos e valores. Contestar, com um cenho severo, é sinal de mau agouro. Calem-se os críticos dos governos: político dá a mão para o favelado, num círculo imbuído de parca e torpe esperança. O caneco de campeão, caro brasileiro, não põe comida na mesa, mas remata uma taquicardia boa, daquelas que devem acometer a todos os afortunados. Se a taça da Copa vem para os trópicos, é um indício rijo e contundente de que o Brasil pode dar certo: somos a potência em um esporte onde o drible e a estratégia valem o lugar mais alto do pódio. No drible, não é necessário divisar os passes mágicos de Pelé para enxergar a habilidade do brasileiro: aqui, driblam-se os impostos, as tarefas escolares e a vergonha. A estratégia é outro item onipresente e onipotente na vida do brasileiro: como sair de uma dívida posando de bom moço?
A saída de tantas vidas canhestras perpassa por uma catarse coletiva. O brasileiro poderá criticar, a menos que seu telhado esteja incólume de trapaças e ardis. Poderá ainda requerer um nível de vida digno, desde que arregace as mangas para edificá-lo. O estudante deverá falar da má índole de um professor, salvo se a conduta discente for impoluta.
Os maiores inimigos das virtudes do brasileiro – os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – articulam entre si meios de tornar eternas as vantagens escusas que possuem. O ex-desempregado e atual presidente, Lula, está em campanha desde o raiar de 2006, valendo-se de todo o aparato que o cargo lhe confere. Os deputados aqui no Brasil não respondem por seus crimes em um tribunal civil; possuem, sob olhos arregalados de alguns, o tal do “foro privilegiado”. A justiça brasileira é lenta e conivente com as tramóias das esferas políticas. Porém, sustentar os salários etéreos do Poder Judiciário demanda o pagamento de R$ 118 de cada brasileiro. Sendo que muitos cidadãos (?) não conseguem ganhar essa quantia.
Por isso, nem Carnaval, nem Copa. Espero que chovam canivetes na Sapucaí e que o Brasil seja goleado pela Croácia. Com dor no peito e aviltado no orgulho, o brasileiro pode, enfim, dedicar-se a seus problemas domésticos.

domingo, fevereiro 19, 2006

Um deslize imperdoável, por Gilmar Luís Silva Júnior, em 19 de fevereiro de 2006.

O impacto das charges do profeta Maomé vem esmorecendo a cada dia. O que realmente permanece é a sensação de que a justiça não foi feita. Justiça, em mundo que concebe a engenharia genética e que engendra ódios tribais, é uma ação que se olvidou há muito tempo. Ser justo é uma qualidade que se refugiou em organizações não-governamentais, cujos brados de piedade obtêm olhares apenas curiosos da comunidade internacional.
Entre conversas informais, auferi que o senso comum de muitas pessoas vê as manifestações públicas muçulmanas como fruto de mais uma manobra militar. “Nossa, como essa gente adora uma confusão”: tornou-se epígrafe de como os árabes são vistos. Um povo encrenqueiro. O imaginário popular encontra respaldo na seleção de publicações que a grande imprensa brasileira leva aos lares do país. Conquistas dos países árabes jamais ocupam os preciosos segundos dos noticiários. Já a sentença de morte do escritor Salman Rushdie, autor de Versículos Satânicos, e o assassinato de Theo van Gogh, diretor do filme Submissão (sobre a violência islâmica contra as mulheres), debatem-se nos jornais impressos e falados. Correspondentes de notáveis emissoras batem o martelo: os muçulmanos são hostis à democracia e ao respeito aos direitos humanos.
Uma carta anônima, que chegou à Comissão de Direitos Humanos da ONU em 1998, relata o sofrimento infligido às mulheres afegãs pelo antigo regime Talibã. Ela relata que mulheres não podem ir às escolas, não devem usar sapatos e são confinadas aos lares. A aparição das atrocidades do Talibã trouxe alívio às moças do Ocidente. Mas a história de tanta intolerância pertence ao mesmo lado da moeda que abarca as sociedades ocidentais, ditas democráticas. O Talibã chegou ao poder graças aos portentosos dólares enviados pelos EUA, na sua antiga rixa com a ex-URSS.
Foi sob a égide do insignificante reino da Dinamarca, um país perdido no Norte da Europa, que o fato das charges se converteu em problema. Um país com quase 6 milhões de pessoas entrou no centro do vórtice ideológico entre Islã e Ocidente.
Torna-se azado o adágio: nos menores fracos, estão os piores venenos. A pequena Dinamarca é um país racista. Dinamarqueses que se casam com estrangeiros são obrigados a viverem no Sul da Suécia até a decisão de Copenhague de permitir ou não o casal de viver no diminuto país, que conta com 400 mil emigrantes e seus descendentes. O jornal Jyllands-Posten não publicou as charges inocentemente. O editor de Cultura do periódico, Flemming Rose, corrobora as intenções político-ideológicas de tal ação. “Isto tudo é sobre a questão de integração e o quão compatível é a religião do Islã com a sociedade moderna”, afirmou. Passou despercebido para o Ocidente que um grupo islâmico dinamarquês pediu, pacificamente, que o jornal se desculpasse. O primeiro-ministro da Dinamarca, Anders Fogh Rasmussen, se negou a receber uma delegação de 11 embaixadores muçulmanos. Anders alegou “falta de tempo”. Não seriam falta de vergonha e a mais pura covardia?
A Dinamarca, a grande protegida das farpas dos noticiários acerca desse imbróglio, é governada por partidos de direita desde 2001. Isso significa que ações federais contra os estrangeiros vêm sendo sistematicamente realizadas. O próprio premier do país defende a invasão do Iraque, ao manter 700 soldados no Oriente Médio. E ele pretende dobrar esse contingente militar.
Pobres árabes. Sem direito aos microfones, passam pelos percalços da edição maldosa da grande imprensa ocidental. Os alaridos de multidões muçulmanas são “os novos hunos” que afligem o Ocidente, tão preocupado em fingir a aplicação dos Direitos Humanos. A hipocrisia do G-8 e de outras nações que se intitulam desenvolvidas me dá náuseas. Foi da Europa que vieram os maiores crimes contra a Humanidade: o racismo, a colonização, o nazismo, a xenofobia. Com tamanhos disparates, o Museu do Louvre, por exemplo, criado com artefatos subtraídos de países milenares, perde a força cultural que nele se encerra. Aquelas cidades modernas, com arranha-céus e parques asseados, são a sede de pensamentos vis, histriônicos e ignóbeis. Um alento deve ser dito à Europa e aos demais “ricos”: vocês sugaram o bem mais valoroso de milhões de pessoas – a cidadania – em proveito de uma riqueza que não se traduziu em compaixão ou em verdadeiro conhecimento. Samuel P. Huntington, professor de Harvard, salienta que os embates do século XXI não serão entre nações, mas sim entre culturas. O Ocidente que se cuide, pois a entidade “cultura” não possui endereço certo para o envio de mísseis teleguiados.

sábado, fevereiro 11, 2006

Charges bombásticas, por Gilmar Luís Silva Júnior, em 9 de fevereiro de 2006.

A publicação de charges do profeta Maomé na imprensa européia apenas tornou patente a nova maneira de embate no século XXI. As charges apareceram primeiro em jornais dinamarqueses em setembro de 2005. Em janeiro deste ano, foi a vez dos periódicos noruegueses de publicá-las, sendo logo seguidos pelos jornais franceses e de outros países europeus.
Um historiador do qual não me recordo o nome causou um furor conceitual ao sacramentar o fim do século XX com a derrocada da Guerra Fria. Certamente, o fim da bipolarização mundial entre EUA e ex-URSS conferiu à geopolítica outras tendências, riscando novos conceitos. A emergência de mercados unificados para fazer frente ao desafio globalizante foi o primeiro recado dado pela inédita conjuntura. Mas a ruptura com o passado ainda não estava completa. Os países tentavam dirimir o peso do século XX apenas no âmbito comercial. A emergência de grandes blocos econômicos, além de insistir na marginalização do Terceiro Mundo, não promoveu mudanças de mentalidade em curto prazo.
Foi na manhã de 11 de setembro de 2001 que dois aviões, ao se chocarem com as Torres Gêmeas, fomentaram uma nova maneira de pensar para o século XXI. Não houve, no entanto, melhorias de raciocínio em relação aos pensamentos de outrora. A visão hegemônica – leia-se de partidos de direita dos EUA e da Europa – permaneceu tacanha, podre e preconceituosa. Dois fundamentalismos, que passaram incólumes pelo século XX, tomavam para si as cenas mais atrozes do iniciante milênio. Os fundamentalismos americano e árabe chocaram-se na mesma intensidade que os aviões derrubaram dois prédios com mais de 100 andares. A pujança das Torres Gêmeas ruiu diante da demência de terroristas árabes. O Afeganistão, primeiro alvo da ditadura planetária de George W. Bush, virou igualmente pó, sem conotação bíblica. A conotação foi, por incrível que pareça, libertária. Bush pretendia livrar o mundo do terror. Mas implantou algo similar no planeta: o medo de ser visto como simpatizante de Maomé é a garantia de ser alvo de foguetes e bombas direcionadas por computador.
Pobre século XXI, que nasce sob o estigma de um medievalismo difícil de engolir. Condenar os desmandos de Bush configurou-se como um lugar-comum, mas concordar com a truculência árabe como se fosse inata a toda cultura muçulmana é um disparate. Um pouco de História serve para elucidar olhares míopes sobre o novo conflito mundial. A vitória de Carlos Magno sobre os árabes, em 732, não significou apenas a salvaguarda da fé católica em quase toda a Europa. O imperador franco assinou o atestado de atraso do continente europeu naquela época, jogando extensas áreas aos desmandos da Igreja Católica e à ruralização promovida por senhores feudais. Enquanto a Europa Cristã criava, em 1231, os Tribunais de Inquisição, a Espanha Muçulmana era um dos centros irradiadores de conhecimento, já no século VIII. Os árabes inovaram na Matemática, na Física, na Química e na Medicina, além de ampliar o conhecimento de obras gregas, principalmente da filosofia de Aristóteles. A Europa Cristã se especializava na caça de bruxas e em grandes autos-de-fé. Até o movimento organizado para libertar a Terra Santa – Jerusalém – das mãos dos muçulmanos, os “infiéis”, recebeu o pomposo nome de Cruzadas. Os livros de História do Ocidente, em sua maioria, contam as atrocidades cometidas pelos árabes, mas não mencionam que os muçulmanos jamais destruíram igrejas de outros credos, num inusitado respeito à tolerância. Coisa que a Igreja Católica jamais ouviu falar, pelos exemplos medievais e pelos desatinos que perpetra em nossos dias.
O brilho muçulmano, contudo, feneceu. A mistura entre religião e política transcendeu o plano do aceitável e acirrou diferenças entre duas culturas cujo nascimento fora comum. Três raízes – judaica, cristã e muçulmana – têm mais pontos em comum do que imaginam. Mas se odeiam numa intensidade que desafia os séculos. E o mundo árabe teve a desgraça de repousar sobre desertos que escondem uma riqueza que faz os olhos do caubói Bush se arregalarem: o petróleo.
O petróleo vem causando mortes desde muitos anos. Agora, ele se torna até um coadjuvante nos esbarrões que irão permear todo esse século: o choque cultural. Num mundo onde a globalização virou sinônimo de pós-modernidade, a intensificação de ódios seculares e o recrudescimento de culturas dão o tom dos discursos. Se for preciso, o fundamentalismo americano vai valer-se de seus dólares e calar o co-irmão árabe. Se necessário, os terroristas árabes hão de sacrificar milhares de inocentes em atentados para chocar o Ocidente e para sublevar multidões de fanáticos. Os inimigos não possuem um corpo definido. A hostilidade reside agora nas mentes. E, convenhamos, escanear cérebros em busca de perfis potencialmente perigosos pertence ao mundo dos filmes de ficção científica.
Esse choque cultural entre Ocidente e Islã, da maneira como que se apresenta, é realmente incomum. No século XX, EUA e muçulmanos chegaram a trabalhar juntos, para suprimir o perigo remoto: o Comunismo. Foram os EUA que engendraram o terrorista Osama Bin-Laden, ao armar até os dentes a Al-Qaeda para expulsar os soviéticos do Afeganistão, no final dos anos 70. A guerra entre Irã e Iraque, de 1980 a 1988, teve a participação nada discreta dos EUA. O governo Reagan apoiou Saddam Hussein, em detrimento do iraniano aiatolá Khomeini. Saddam saiu do conflito com um exército com mais de um milhão de soldados.
No último dia 5, o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, condenou a publicação das charges de Maomé. Não o fez por consideração à cultura árabe. Villepin sempre foi contrário ao florescimento de bairros muçulmanos na França, num intento claramente xenófobo. Ele posou de bom moço por medo. Medo, pânico e ojeriza ao que uma declaração desastrada pode excitar. Na memória francesa, os carros ainda queimam em subúrbios superlotados, nos quais coabitam os imigrantes de países pobres em busca de um lugar ao Sol.
O mundo ocidental achou desproporcional a reação dos muçulmanos frente a uma simples manifestação de pensamento. O mundo árabe respondeu. A Liga Árabe Européia (LAE) publicou, no início de fevereiro, uma série de charges anti-semitas. Munido da desdita ocidental, o website da LAE afirmou que tal medida visa “romper tabus”. Pesando ambos os lados, a razão está onde? Os adeptos do cristianismo vêem com desconfiança os árabes, tachando-os de intolerantes. Mais um erro conceitual. O Corão, livro sagrado do Islamismo, apregoa a guerra como a última alternativa de entendimento, sendo que crianças e mulheres nunca deverão ser molestadas. A Igreja Católica queimou toda a sorte de pessoas, disseminou a catequização forçada de indígenas e ainda posa de boa samaritana. Nos EUA, fundamentalistas cristãos lançam livros à fogueira, na mais medieval cerimônia. Ainda nos EUA, em 1984, dois irmãos mórmons assassinaram a cunhada e sobrinha, vistas como empecilhos para a conversão do outro irmão. A família Bush encarna valores semelhantes ao caso anterior: matar quem diverge deles. A cultura árabe se interpõe entre Bush e o domínio do petróleo.O Afeganistão se foi. As bombas guiadas pelo computador não divisaram inocentes de culpados e reduziram a pó um país já miserável. O Iraque é a bola da vez. Imbuído de um sentimento cínico, a ditadura George W. Bush depôs Saddam Hussein, acusando-o de sanguinário. Ou Bush não tem espelho, ou Bush é um cínico inveterado. Estamos em um novo milênio, mas atrelados a práticas da Idade Média. Infelizmente, ainda se mata pela maneira de rezar e de se vestir.

domingo, fevereiro 05, 2006

O que houve com a esquerda?, por Gilmar Luís Silva Júnior – 05 de fevereiro de 2006.

A eleição de diversos governos de esquerda na América Latina – Hugo Chávez em 1998, Lula e Kirchner no raiar do século XXI e, recentemente, Evo Moralez – ostenta para o restante do planeta que o continente tem-se tornado um bastião dos movimentos de rebeldia. Nada mais justo que as grandes conferências de crítica ao modelo de capitalismo atual aportassem em países latino-americanos. O Fórum Social Mundial deste ano, na Venezuela, corrobora a afirmação.

Mas um cheiro de impotência se imiscui entre aqueles que pensam em ações efetivas de combate às desigualdades sociais. Inúmeras vezes, o FSM carregou a pecha de ser um Woodstock Social, onde tudo se fala e nada se decide. Os dias no FSM premiam a quem lá se dirige com palavras há muito banidas do vocabulário político de outras regiões. O italiano Mimmo Porcaro, da Associação Cultural Punto Rosso, está em Caracas e, sem exageros, fala em “renascimento” ao se referir sobre os conceitos que andam em voga nas ruas da capital venezuelana. “Vocês estão tendo a coragem de usar de novo uma palavra que, entre nós, está praticamente banida. Na Europa, socialismo tornou-se uma palavra quase impronunciável”, disse.

O termo “socialismo” realmente está presente em diversos souvenires, mas carece de definição prática. A implantação de uma sociedade socialista permanece no mundo imaginário, quase em um plano metafísico. Roberto Sávio, presidente da agência IPS e membro do comitê internacional do Fórum, endossa esse medo: “O FSM não pode se limitar a ser uma espécie de exercício espiritual”. Um plano de ataque deve ser erigido, e rápido. O mundo está envolto em mais um prenúncio de guerra. O presidente George W. Bush e Cia começam a elencar uma série de motivos para a invasão do Irã.

O que mais assombra é o silêncio da esquerda mundial acerca disso. Em dias de Fórum, o debate sobre a geopolítica da delicada situação entre EUA e Irã aliciaria uma boa parte das atenções. Mas nada. Análises furtivas aparecem, sem o encanto de serem disseminadas. O jornalista Mike Whitney redigiu uma matéria na qual aponta, de forma contundente, os escusos motivos que levarão Bush a invadir o País dos Aiatolás.

Whitney afirma que o governo norte-americano quer invadir o Irã para impedi-lo de criar uma Bolsa que comercialize petróleo em euros. Isso significaria que milhões de dólares seriam despejados de volta nos EUA, ruindo o valor da moeda americana. O mercado do “ouro negro” é monopolizado pela América, através de duas instituições norte-americanas sediadas em Londres. Assim, a atual conjuntura força os bancos centrais de inúmeros países a manterem portentosos estoques de dólares. Com isso, a moeda norte-americana representa 68% das reservas globais de divisas. Sob a escusa de proteger o mundo de uma hecatombe nuclear, Bush deseja resguardar o sistema capitalista como está: gerando milhões de pobres e enriquecendo meia dúzia de asquerosos empresários.

Em outras épocas, a esquerda mundial levantar-se-ia em armas ou em protestos gigantescos. Saudades de 1968, o ano que jamais terminou. A dita “esquerda” atual, em especial as cúpulas latino-americanas, aperta as mãos sujas de petróleo de Bush. Lula propala como vitória da administração petista o pagamento de milhões de dólares ao FMI, referentes tão-somente aos juros da dívida externa brasileira. O Brasil não deixou de estar na periferia do mundo, mas o governo do PT teima em aparentar o contrário. Chávez ataca pedrinhas na vidraça norte-americana, mas não se vale dos milhões em caixa para melhorar a situação do povo venezuelano. No Fórum Social Mundial 2006, um político cassado por corrupção teima sobreviver politicamente. Qual a moral e que empáfia do ex-ministro José Dirceu em discursar num local destinado à oposição de tudo que é ruim?

A esquerda calou-se, ficou bem-comportada e hoje traja ternos Armani. Ser histérico remonta aos vestígios ruins de um passado radical. Lutar por um mundo mais solidário é algo fora de moda. Ou é matéria-prima para discussões acaloradas em congressos e fóruns que, ao terminarem, nada mudam pelos arrabaldes miseráveis.

Os vícios do governo federal, por Gilmar Luís Silva Júnior, em 18 de janeiro de 2006.

Ano novo, vida nova. Talvez assim o fosse, se a fleuma do povo brasileiro não estivesse tão encarnada em milhões de pessoas. Mal cruzamos o mês de janeiro, os políticos prometem que tudo será diferente. Até um sorriso de conforto seria esboçado, se o horizonte não mostrasse que um ano eleitoral está a espreitar o brasileiro, com seus ardis.

O passar dos anos não traz somente mais rugas. Carrega consigo o desgaste de um sonho, de um projeto que se insinuava libertário. O advento do PT, nos anos 80, significou o reduto de valores éticos, tão olvidados durante os mais de 500 anos de história do nosso país. Dos portugueses restaram as instituições arcaicas e toda uma série de práticas reduzidas a alguns “ismos”. Não é preciso raciocínios mirabolantes para se depreender a origem do corporativismo, do paternalismo, do fisiologismo, etc. São vícios que, atualmente, não carregam a pecha negativa que lhe são inerentes. Depois dos lusitanos, a jovem sociedade brasileira aprendeu com ingleses, norte-americanos, franceses, entre outros, que a divisão de classes é um mal necessário. Tal desigualdade não encontra a justiça diante de si: os olhos e os ouvidos da nação estão atados.

E permanecerão atados até o final do empanado governo petista. O primeiro ano da administração Lula desenrolou-se num clima de paz, sustentando por um voto de confiança. A classe mais humilde estava ainda embebida no êxtase da vitória do PT e, diante de tanto sentimento bom e verdadeiro, olhava de soslaio para os tropeços de competência federal. O ano seguinte, 2004, fez o caldo entornar: o escândalo Waldomiro Diniz, envolvendo o ex-ministro e pretenso ditador, José Dirceu, riscou o vidro do outrora incólume caráter petista. O superministro começou sua derrocada, que viria a se concretizar no ano passado. 2005 não será esquecido. O ano que o lamaçal atingiu um nível explosivo. Nunca se viram tantas cifras mudando de mãos por objetivos tão torpes. Mensalão, Mensalinho, BMG, etc. são siglas e práticas que entraram de vez no imaginário do brasileiro. Não servem, no entanto, para figurar entre figuras do folclore, como apregoa o simplório presidente Lula.

O PT sofre de um problema de personalidade e isso compromete todo um projeto de governo.
Enquanto a corja petista governar como um partido conservador, aparecer na TV como populista e ser visto como progressista para o restante do mundo, os desatinos vão permear o cotidiano do Brasil. Pagar R$ 15 bilhões antes do prazo para o ávido FMI não soou muito bem para uma sigla cujas prerrogativas eram o socialismo e a melhoria de vida do trabalhador. Um presidente que dá os ombros para a educação não merece sentar na cadeira mais almejada do país. Um partido também quer calar a imprensa: na segunda semana de janeiro, o PT chocou muitas pessoas ao tentar proibir o uso de gravações telefônicas em reportagens investigativas. O velho e desgastado adágio cabe a esse acinte ao exercício do Jornalismo: quem não deve, não teme.

No dia 25 de janeiro deste ano, o presidente Lula concedeu mais munição à falta coerência de seu governo. No Congresso, mais de 480 deputados votavam o destino da verticalização partidária. Se for mantida, a verticalização estende as alianças do nível mais elementar – o município – até a esfera federal. Isso significaria que as alianças entre as siglas seguiriam uma tendência em todo o Brasil. Ponto para a coerência. Mas Lula é contra. Lula prefere o “balaio de gatos”: no RS, PT e PMDB se digladiam até a morte, mas em Brasília os dois partidos tentam selar uma relação cordial.

Soa como derrota a falência de mais um sonho. Um sonho de mudança que se converteu em engodo. Dói ver um partido que desfraldava a ética como efígie se tornar um monstro, sem cara, sem cor. O PT governa para os patrões, vigia a opinião pública como uma agremiação populista reacionária e quer se perpetuar no poder como uma ditadura proletária. A sigla de Lula não mede esforços em calar opositores. Até assassinatos de antigos membros são cogitados no cenário atual – vide os casos dos ex-petistas Celso Daniel e Toninho do PT. São tantos equívocos ideológicos que causam náuseas nos poucos corações ainda sãos nesse imenso país.