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Textos de minha vida.

sábado, fevereiro 11, 2006

Charges bombásticas, por Gilmar Luís Silva Júnior, em 9 de fevereiro de 2006.

A publicação de charges do profeta Maomé na imprensa européia apenas tornou patente a nova maneira de embate no século XXI. As charges apareceram primeiro em jornais dinamarqueses em setembro de 2005. Em janeiro deste ano, foi a vez dos periódicos noruegueses de publicá-las, sendo logo seguidos pelos jornais franceses e de outros países europeus.
Um historiador do qual não me recordo o nome causou um furor conceitual ao sacramentar o fim do século XX com a derrocada da Guerra Fria. Certamente, o fim da bipolarização mundial entre EUA e ex-URSS conferiu à geopolítica outras tendências, riscando novos conceitos. A emergência de mercados unificados para fazer frente ao desafio globalizante foi o primeiro recado dado pela inédita conjuntura. Mas a ruptura com o passado ainda não estava completa. Os países tentavam dirimir o peso do século XX apenas no âmbito comercial. A emergência de grandes blocos econômicos, além de insistir na marginalização do Terceiro Mundo, não promoveu mudanças de mentalidade em curto prazo.
Foi na manhã de 11 de setembro de 2001 que dois aviões, ao se chocarem com as Torres Gêmeas, fomentaram uma nova maneira de pensar para o século XXI. Não houve, no entanto, melhorias de raciocínio em relação aos pensamentos de outrora. A visão hegemônica – leia-se de partidos de direita dos EUA e da Europa – permaneceu tacanha, podre e preconceituosa. Dois fundamentalismos, que passaram incólumes pelo século XX, tomavam para si as cenas mais atrozes do iniciante milênio. Os fundamentalismos americano e árabe chocaram-se na mesma intensidade que os aviões derrubaram dois prédios com mais de 100 andares. A pujança das Torres Gêmeas ruiu diante da demência de terroristas árabes. O Afeganistão, primeiro alvo da ditadura planetária de George W. Bush, virou igualmente pó, sem conotação bíblica. A conotação foi, por incrível que pareça, libertária. Bush pretendia livrar o mundo do terror. Mas implantou algo similar no planeta: o medo de ser visto como simpatizante de Maomé é a garantia de ser alvo de foguetes e bombas direcionadas por computador.
Pobre século XXI, que nasce sob o estigma de um medievalismo difícil de engolir. Condenar os desmandos de Bush configurou-se como um lugar-comum, mas concordar com a truculência árabe como se fosse inata a toda cultura muçulmana é um disparate. Um pouco de História serve para elucidar olhares míopes sobre o novo conflito mundial. A vitória de Carlos Magno sobre os árabes, em 732, não significou apenas a salvaguarda da fé católica em quase toda a Europa. O imperador franco assinou o atestado de atraso do continente europeu naquela época, jogando extensas áreas aos desmandos da Igreja Católica e à ruralização promovida por senhores feudais. Enquanto a Europa Cristã criava, em 1231, os Tribunais de Inquisição, a Espanha Muçulmana era um dos centros irradiadores de conhecimento, já no século VIII. Os árabes inovaram na Matemática, na Física, na Química e na Medicina, além de ampliar o conhecimento de obras gregas, principalmente da filosofia de Aristóteles. A Europa Cristã se especializava na caça de bruxas e em grandes autos-de-fé. Até o movimento organizado para libertar a Terra Santa – Jerusalém – das mãos dos muçulmanos, os “infiéis”, recebeu o pomposo nome de Cruzadas. Os livros de História do Ocidente, em sua maioria, contam as atrocidades cometidas pelos árabes, mas não mencionam que os muçulmanos jamais destruíram igrejas de outros credos, num inusitado respeito à tolerância. Coisa que a Igreja Católica jamais ouviu falar, pelos exemplos medievais e pelos desatinos que perpetra em nossos dias.
O brilho muçulmano, contudo, feneceu. A mistura entre religião e política transcendeu o plano do aceitável e acirrou diferenças entre duas culturas cujo nascimento fora comum. Três raízes – judaica, cristã e muçulmana – têm mais pontos em comum do que imaginam. Mas se odeiam numa intensidade que desafia os séculos. E o mundo árabe teve a desgraça de repousar sobre desertos que escondem uma riqueza que faz os olhos do caubói Bush se arregalarem: o petróleo.
O petróleo vem causando mortes desde muitos anos. Agora, ele se torna até um coadjuvante nos esbarrões que irão permear todo esse século: o choque cultural. Num mundo onde a globalização virou sinônimo de pós-modernidade, a intensificação de ódios seculares e o recrudescimento de culturas dão o tom dos discursos. Se for preciso, o fundamentalismo americano vai valer-se de seus dólares e calar o co-irmão árabe. Se necessário, os terroristas árabes hão de sacrificar milhares de inocentes em atentados para chocar o Ocidente e para sublevar multidões de fanáticos. Os inimigos não possuem um corpo definido. A hostilidade reside agora nas mentes. E, convenhamos, escanear cérebros em busca de perfis potencialmente perigosos pertence ao mundo dos filmes de ficção científica.
Esse choque cultural entre Ocidente e Islã, da maneira como que se apresenta, é realmente incomum. No século XX, EUA e muçulmanos chegaram a trabalhar juntos, para suprimir o perigo remoto: o Comunismo. Foram os EUA que engendraram o terrorista Osama Bin-Laden, ao armar até os dentes a Al-Qaeda para expulsar os soviéticos do Afeganistão, no final dos anos 70. A guerra entre Irã e Iraque, de 1980 a 1988, teve a participação nada discreta dos EUA. O governo Reagan apoiou Saddam Hussein, em detrimento do iraniano aiatolá Khomeini. Saddam saiu do conflito com um exército com mais de um milhão de soldados.
No último dia 5, o primeiro-ministro francês, Dominique de Villepin, condenou a publicação das charges de Maomé. Não o fez por consideração à cultura árabe. Villepin sempre foi contrário ao florescimento de bairros muçulmanos na França, num intento claramente xenófobo. Ele posou de bom moço por medo. Medo, pânico e ojeriza ao que uma declaração desastrada pode excitar. Na memória francesa, os carros ainda queimam em subúrbios superlotados, nos quais coabitam os imigrantes de países pobres em busca de um lugar ao Sol.
O mundo ocidental achou desproporcional a reação dos muçulmanos frente a uma simples manifestação de pensamento. O mundo árabe respondeu. A Liga Árabe Européia (LAE) publicou, no início de fevereiro, uma série de charges anti-semitas. Munido da desdita ocidental, o website da LAE afirmou que tal medida visa “romper tabus”. Pesando ambos os lados, a razão está onde? Os adeptos do cristianismo vêem com desconfiança os árabes, tachando-os de intolerantes. Mais um erro conceitual. O Corão, livro sagrado do Islamismo, apregoa a guerra como a última alternativa de entendimento, sendo que crianças e mulheres nunca deverão ser molestadas. A Igreja Católica queimou toda a sorte de pessoas, disseminou a catequização forçada de indígenas e ainda posa de boa samaritana. Nos EUA, fundamentalistas cristãos lançam livros à fogueira, na mais medieval cerimônia. Ainda nos EUA, em 1984, dois irmãos mórmons assassinaram a cunhada e sobrinha, vistas como empecilhos para a conversão do outro irmão. A família Bush encarna valores semelhantes ao caso anterior: matar quem diverge deles. A cultura árabe se interpõe entre Bush e o domínio do petróleo.O Afeganistão se foi. As bombas guiadas pelo computador não divisaram inocentes de culpados e reduziram a pó um país já miserável. O Iraque é a bola da vez. Imbuído de um sentimento cínico, a ditadura George W. Bush depôs Saddam Hussein, acusando-o de sanguinário. Ou Bush não tem espelho, ou Bush é um cínico inveterado. Estamos em um novo milênio, mas atrelados a práticas da Idade Média. Infelizmente, ainda se mata pela maneira de rezar e de se vestir.

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