GilmarJunior

Textos de minha vida.

sábado, janeiro 22, 2005

O cheiro

Dei o sinal para o ônibus parar. Vinha lento, o trânsito intenso o impedia de acelerar mais forte. Subi e respirei fundo, mas discreto, para sorver aquele ambiente refrigerado. Na rua, o tempo abafado era prenúncio de uma chuva grave que se avizinhava. Lá dentro, já sentado nos bancos grandes e macios, o clima era de repartição pública.

Vazio era a condição que não se perdura muito em um ônibus de uma cidade grande. Em questão de meia dúzia de paradas, os bancos foram preenchidos por um sem número de tonalidades de peles. Atrás de mim, uma mulher negra e a filha carregavam sacolas de panelas, que, ao se chocarem, brindavam os presentes com um estampido agudo e breve.

Não tardou muito para que minha qualidade de suserano do banco do coletivo fosse revogada. Uma moça passou na roleta e dirigiu seu olhar para onde eu estava. Pediu licença em monossílabo e virei as pernas para ela passar rumo ao canto da janela. Não gostava de janelas desde os dez anos. Pensava que apenas crianças brigavam para sentar ali, para ver os carros lá fora. Mais por birra que por convicção, não sentei mais à janela desde então.

Porém, meu conforto cedeu a uma posição, no mínimo, incômoda. A mulher era gorda, realmente gorda. Cada coxa dela era da mesma largura que a distância entre meus ombros. Ou seja, ela era mais de duas vezes mais larga que eu. Tive de me curvar para a esquerda e assentar-me na beirada do banco.

Tamanha ação me fez esquecer de um dos sentidos mais poderosos do ser humano: o olfato. Já posto na minha situação de passageiro incomodado, passei a divagar em pensamentos vários. Num átimo, sou surpreendido pelo cheiro da moça ao lado, que me roubara o conforto de outrora.

Um cheiro de roupa de molho, de cozinha sendo limpa, de nostalgia. Remeteu-me aos oito anos, na casa de minha avó. A moça do ônibus era jovem, as roupas em nada lembravam os anos senis. Mas aquele odor de mulher da lida e do trabalho doméstico me jogou anos atrás.
Do alto de meus vinte e quatro anos, meus olhos se fixaram em um ponto indefinido do teto do coletivo. Meu mundo parou naquele momento e comecei a reviver os anos de menos de uma dezena. Nem enchiam as mãos, meus tenros anos de criança me tomaram de assalto.

Vi minha avó, de turbante na cabeça, lidando com quatro panelas: para a carne, para o arroz, para as batatas e para o macarrão, este sua especialidade. Não havia neto, nora, genro, filho ou filha que negasse um prato de macarrão dela. As mãos chispadas de pintas da velhice (não sei ainda o motivo pelo qual isso acontece) eram tão ágeis no manejo de ingredientes diversos e faziam erguer uma fumaça com um odor marcante de puerícia.

Eu de soslaio a olhava, ela me via e sorria, naquele tipo de riso onde cabem apenas sentimentos bons. O rosto enrugado não escondia a bondade inerente às avós; a pele branca não ocultava anos de privações e de sofrimentos, tudo sublimado pela simples presença dos filhos dos filhos dela. Sentei-me à mesa, depus meu rosto nas mãos e passei a olhar para o ritual mágico da confecção de um almoço em família.
O vestido era florido, um tanto desbotado pelo uso quase diário. As flores pareciam-se despedir; iam desaparecendo no tecido fino. Porém, minha vó era vivacidade e sua presença aglutinava quase uma dezena de filhos, um número ainda maior de netos. Eram barulhos bons, dos potes que ela pegava, dos armários que se abriam ante seus dedos céleres. Eu na mesa era o mesmo de hoje, um telespectador que retornou a um almoço entre vários que existiram na minha infância. Via a minha avó com mais respeito, o carinho que era o mesmo. Ela não sabia ler nem escrever, alguns a desdenhavam por isso. No entanto, era adepta da paz, não permitia que os chinelos dos pais viessem em tom de reprovação a qualquer peraltice dos netos. Para ela, era tudo coisa de criança; e ria-se com tantos netos e com tantas artes que se desnudavam a cada encontro dos pimpolhos.
Em nada minha vó lembrava a moça rechonchuda do ônibus. Mas um simples odor me impeliu a desenterrar uma bonança de minha memória. O que seria dos que crescem se a infância fosse descartada como um papel sem utilidade?
O almoço ficara pronto. Andando lenta e persistente, minha avó conclamava a todos para que fossem à cozinha. Crianças tinham a primazia de sentar à mesa, para não derramar aquela deliciosa combinação das panelas.
O festival de comidas terminou sem eu ter novamente tocado no macarrão famoso da vó. Uma freada brusca do ônibus quase me fez ir ao encontro da roleta. Acordei meio tonto, dada a intensidade de tais lembranças. A moça gorda me segurou, sorrindo.
Meu destino se aproximava, dei o sinal para descer. Levantei-me, esqueci o incômodo da viagem, olhei para a gorducha e falei: “Obrigado por tudo”. Não pude divisar seu rosto, o ônibus partiu em alta velocidade.