GilmarJunior

Textos de minha vida.

quinta-feira, dezembro 28, 2006

Humanismo em Fernão Lopes

INTRODUÇÃO

Em 1989, tive meu primeiro contato com a carta de Pero Vaz de Caminha. Estava na 3ª série do ensino fundamental, a professora discorria sobre o “descobrimento” do Brasil pelos portugueses. Uma frase emblemática permaneceu imiscuída a muitas lembranças da puerícia: “a terra é boa, pode dar de tudo pelas águas que tem”. O escrivão de Cabral premiou ao rei português – e a nós, leitores dos séculos seguintes – com poesia em prosa. À inocência dos índios, Caminha disparou: “não cobriam suas vergonhas”.

São inúmeras as passagens com uma linguagem metafórica de fazer inveja a pretensos poetas. No entanto, alguns teóricos – como a maioria dos manuais de literatura a que temos acesso – apregoam que a Carta não passa de um documento histórico, artefato pertencente ao Quinhentismo. Essa denominação também é chamada de literatura informativa. Essa avalanche de conceitos e denominações instiga uma abordagem sobre o fato de o registro de um acontecimento histórico pode vir a ser item de valor literário.

A partir de agosto deste ano, tive a oportunidade de contatar os primórdios da literatura em língua portuguesa. E pude presenciar a maturação concomitante da “última flor do Lácio[1]” e de temas vinculados à antiga Lusitânia. Durante esse processo, percebi que Caminha era tributário de um movimento anterior. O estilo da Carta encontrava muito respaldo na obra do cronista Fernão Lopes. Até mesmo as visões de mundo – que serão explicitadas – eram comuns aos dois autores.

Por isso, resolvi escrever um pouco sobre esse assunto ainda tão incógnito para o grande público. Ao ler as crônicas de Lopes, pude sentir algo análogo à percepção da Carta. O conhecimento parece sobrepor-se e, quanto mais se instila, a curiosidade mais ferrenha se instaura em meu espírito.


CAPÍTULO 1 – PORTUGAL E O HUMANISMO

1.1. A formação da monarquia portuguesa

A Península Ibérica, desde o século VIII, viveu sob domínio dos muçulmanos. No entanto, um pequeno reino situado ao norte, de Astúrias, era cristão e mantinha vivo o desejo de levar a cristandade até Gibraltar. A partir do século XI, iniciou a chamada Guerra de Reconquista. Segundo o sociólogo Demétrio Magnolli, a luta sob o estandarte cristão cobriu cinco séculos. Magnolli ainda informa que os primeiros êxitos dos cristãos originaram os reinos de Leão, Castela, Navarra e Aragão. Havia um condado de Leão chamado Portucale, que era de propriedade de D. Henrique de Borgonha, vassalo do reinado leonês.

O condado de Portucale, contudo, tratou de erigir conflitos dentro da cristandade. A viúva de D. Henrique, D. Teresa, chegou a se intitular “Rainha de Portugal”, desafiando o trono de Leão. Ela acabou derrotada, mas lançou as sementes do separatismo lusitano. Em 1143, na Conferência de Zamora, o papa santificou Afonso Henriques, filho de D. Teresa, com o nome de Afonso I de Borgonha. Além disso, o papado reconhecia a nova monarquia. A capital, Lisboa, foi reconquistada em 1147. Em 1249, caía o último bastião mouro em Algarve, no sul de Portugal. O país, desde esse ano, configurava-se na proporção que hoje conhecemos.

As constantes belicosidades na história portuguesa fomentaram uma centralização de poder incomum ao resto da Europa Ocidental, que vivia sob o estigma do feudalismo. Os embates contra os mouros e os castelhanos minoraram as prerrogativas da nobreza senhorial do país.

A centralização política precoce moldou um caráter igualmente único na literatura produzida no país. Sedimentada a conquista do território, Portugal manteve uma intensa produção literária de cunho palaciana. O professor Massaud Moisés lembra que o rei D. Dinis foi um dos autores mais profícuos do Trovadorismo, no século XIII. Já no Humanismo, a poesia palaciana vingou em Portugal, ao passo que os versos esmoreceram no restante da Europa Ocidental por um período de quase cem anos (1350 a 1450).

1.2. Características do Humanismo em Portugal

O Humanismo pode ser apreendido como o ápice de um modo de sentir gestado desde o século XII. Arnold Hauser, imbuído de um viés marxista, explica que o Renascimento, no qual se inclui o Humanismo, recebeu uma cisão histórica, que costuma contrapô-lo à Idade Média como um período iluminado. E, por conseqüência, a medievalidade cai na pecha pejorativa de “noite de mil anos”. Ele afirma que

A descoberta da Natureza pela Renascença foi uma invenção do liberalismo do século XIX, que colocou o deleite renascentista na natureza em contraste com a Idade Média, a fim de desferir um golpe na filosofia romântica da história[2].

O autor ainda frisa que a mudança no pensamento da Europa Ocidental em direção à valorização do homem ocorreu no século XII. Tudo atrelado a uma derrocada da economia natural do feudalismo e o ressurgimento das trocas monetárias. A Itália, dada a vivacidade de duas cidades portuárias – Gênova e Veneza – mitigou a influência feudal e adotou novos pressupostos nas artes em geral.

Em Portugal, o Humanismo chegou no século XIV, sob a insígnia da Revolução de Avis, em 1383. Mas, um pouco antes, em 1290, o rei D. Dinis dá um alento à nascente língua portuguesa, ao criar a primeira universidade em Lisboa. Além disso, o “rei poeta” decretou que o português, até então conhecido como língua vulgar, passava a ser idioma oficial e ostentava o epíteto de “Língua Portuguesa”.

O início da literatura portuguesa – o Trovadorismo – foi, em muitos aspectos, uma escola não totalmente alijada ao pensamento medieval, personificado na filosofia escolástica[3]. Os trovadores possuíam idiossincrasias que, muitas vezes, não encontraram respaldo na cultura hegemônica da época. Como bem fala a professora Elisabete Peiruque, “a Igreja buscava uniformizar o pensamento, mas é como uma panela de pressão: acabava escapando em determinados lugares[4]”. Segundo a enciclopédia Larrousse, “o fim do português arcaico é marcado pela publicação do Cancioneiro geral de García de Resende em 1516”, em pleno período humanista.

“Há talentos eminentemente satíricos, talentos senhoris, talentos populares, quem goste do monte, quem goste do rio. O caderno de cada trovador e de cada jogral revela predileções próprias que, para deleite da humanidade, bom seria estabelecer com crítica exatidão[5]”.

Arnold Hauser apenas acrescenta que, no século XV, a tomada de temas vinculados ao homem tornara-se consciente. A Itália liderou neste aspecto. Giovani Boccaccio maculou a cristandade medieval nos contos sórdidos de Decamerão. As matas incultas ocultavam desejos reprimidos duramente por uma sociedade teocrática, mas menos poderosa e onipotente do que se supõe. Petrarca, considerado o “Pai do Humanismo”, trouxe a temática do tempo e da melancolia, que encontrou posição cativa na cultura portuguesa[6]. Dante Alighieri, na obra-prima “Divina Comédia”, ousou vagar por lugares intocáveis pelo pulso firme da Igreja Católica, como paraíso e inferno. Não tardou para que novos vôos pela literatura se propagassem pelo restante da Europa.

O teatro de Gil Vicente é a valorização do linguajar do povo, numa contraposição ao ideário trovadoresco de menosprezar os cânticos que grassavam pela plebe. O povo – entendido como a parte da população menos favorecida economicamente – vem sendo representado na literatura por diferentes acepções. Foi o laõs na Grécia; plebe, vulgus, turba de Roma; arraia miúda e comum povo em Fernão Lopes; populo minuto da Idade Média italiana. Um trovador português chamado Martim Soares, da primeira metade do século XIII, critica um colega “porque os cantares deste agradavam ao público popular e não ao dos trovadores e das damas[7]”.

Parecer análogo possuía Afonso X, na segunda metade do século XIII, que via vileza na arte dos jograis, que divertiam o povo durante as feiras, as festas e as romarias. No século XV, o Marquês de Santiliana, historiador da poesia peninsular, compartilha do mesmo veredito: “Ínfimos son aquellos que sin ningun orden, regla ni cuento fazen estos romances e cantares de que lãs gentes de baxa e servil condición se alegran[8]”.

O desprezo pelo populacho era patente nos humanistas. Gil Vicente deve ter sido deveras repreendido, inclusive o austero Sá de Miranda. Fernão Lopes, ainda que tenha redigido biografias de monarcas, não deixou de mencionar as ações do povo.

Contudo, até meados do século XVII, a poesia era uma arte de agudeza, destinada a damas e a outros ociosos das classes mais abastadas. D. Francisco Manuel de Melo, no referido século, repreende o poeta Lope de Vega por “alguns descuidos ou humildades de seus livros[9]”. Somente com Garret que a influência greco-latina esmoreceu diante de uma valorização do nacional. E, nessa empresa, os escritos de um Fernão Lopes vieram a ser muito cogitados, para a confecção de “um povo genuinamente português”.


CAPÍTULO 2 – FERNÃO LOPES, VIDA E OBRA

2.1. Uma vida emocionante

Um autodidata. A palavra mais comum às dezenas de biografias publicadas acerca de Fernão Lopes revela um espírito dominado pelo desejo de conhecer. Fazer-se mister na técnica de narrar, de colocar em segundo plano os floreios e os meandros fantasiosos que grassaram na prosa medieval de outrora.

Fernão Lopes viveu num período crucial para Portugal. O momento em que a monarquia portuguesa adquiria contornos definidos, livrando-se da tutela castelhana. Deve ter nascido por volta de 1380. Acompanhara de perto os embates com o reino de Castela, cujo fim aconteceu em 1411. Desta feita, conhecera pessoalmente alguns protagonistas dessa época, como D. João I e Nuno Álvares Pereira.

Fernão Lopes começou a vida profissional como tabelião. Em seguida, foi escrivão de D. Duarte, sendo este ainda infante, e de D. João I. Entretanto, o cargo que mudaria os destinos da literatura portuguesa chegou em 1418, quando fora nomeado guarda-mor da Torre do Tombo. A função – que significava ser chefe de arquivo do Estado – era de estrita confiança.

Os anos passaram e Lopes viveu nos reinados de D. João I, D. Duarte, D. Pedro e parte de D. Afonso V. conforme relata a Enciclopédia Livre Wikipédia:

“Ao rei eleito e popular, D. João I, viu suceder um rei mais dominado pela aristocracia, D. Duarte; viu crescer o poder feudal dos filhos de D. João I, e com ele o predomínio da nobreza, que saíra gravemente abalada da crise da independência. Assistiu à guerra civil subseqüente à morte de D. Duarte, à insurreição de Lisboa contra a rainha viúva D. Leonor, e à eleição do infante D. Pedro por esta cidade, e em seguida pelas cortes, para o cargo de Defensor e Regedor do Reino, em circunstâncias muito parecidas com as que tinham levado o mestre de Avis ao mesmo cargo e seguidamente ao trono. Assistiu depois à reacção do partida da nobreza, à queda do infante D. Pedro, à sua morte na sangrenta batalha de Alfarrobeira, à perseguição e dispersão dos seus partidários, ao triunfo definitivo da nobreza, no reinado. Foi testemunha do início da expansão ultramarina e teve a sua quota parte no desastre militar de Tanger, por causa da morte de seu filho médico do infante D. Fernando que veio a morrer em cativeiro, em Marrocos[10]”.

Da obra de Lopes, restam-nos apenas três: Crônica d’El-Rei D. Pedro, Crônica d’El-Rei D. Fernando e Crônica d’El-Rei D. João I (até 1411).

2.2. Características primordiais da prosa de Fernão Lopes

A crônica, hoje em dia, goza de uma popularidade que impede, de certa forma, antever-lhe os primórdios. Vocábulo oriundo do grego kronica bíblia (os anais), a crônica manteve o substrato de ser uma narrativa cronológica. A Enciclopédia Larousse Cultural informa que, apenas na língua portuguesa, a crônica assume características de humor e crítica social, notadamente no Brasil. A partir de 1850, a crônica nesse sentido alastrou-se pela imprensa carioca e, num crescendo, produziu nomes de peso até a atualidade.

Remontemo-nos, no entanto, ao século XV, no qual Fernão Lopes fincou o nome da literatura ao aliar o texto literário à historiografia consciente e presente. Mas um viés considerado antigo, mas por ser o primeiro, atinge a obra de Lopes. O cronista associa narrar uma história a um “ordenar a nua verdade[11]”. Na cosmovisão dos séculos XIV e XV, essa dissociação de História e de Literatura representava a cisão da Verdade e da Formosura, esta vinculada à arte literária, que estaria díspar dos fatos verossímeis.

Já no prólogo da Crônica de D. João I, Lopes assevera que “se outros per ventura em esta cronica buscam fremosura e novidade de palavras, e nom certidom das estórias, desprazer-lhe-á de nosso razoado”. Foi uma ruptura com a forma mentis do trovador medieval, que se imiscuía em veleidades subjetivas, se comparadas com as premissas que Fernão Lopes defendia.

Flora Sussekind fala na emergência de uma ciência menos “gaia” e mais “verdadeira” na prosa de Lopes. Suponho que o adjetivo “gaia” pode ser explicado sob a luz de uma obra muito posterior ao cronista português. Trata-se do livro Gaia Ciência (Die fröhliche Wissenschaft), de Nietzsche. O autor alemão define “gaia ciência” como o nascimento da poesia européia moderna, calcada na região de Provença, no século XII. Em provençal, havia o termo gai saber, que significa a habilidade técnica de possuir um espírito livre para a confecção de obras poéticas. Vale aqui um excerto do livro:

"Desde que me cansei de procurar,

aprendi a encontrar;

Desde que o vento começou a soprar-me na face,

velejo com todos os ventos[12]”.

O que Sussekind quis dizer com uma ciência menos “gaia”? Ela se refere ao fato de haver em Fernão Lopes a preocupação com o factual, e um certo descuido com a busca de uma forma mais apurada nesse relato. Na Idade Média, predominava o gênio inventivo dentro de uma gama de possibilidades já definidas desde o princípio provençal e o corrente recurso ao imaginário da época, personificado na Bíblia e em rituais pagãos resistentes ao Catolicismo reinante. Em suma, as composições medievais não possuíam o atributo de mimesis, retomando o conceito aristotélico de fidelidade ao verossímil.

Na seqüência da literatura portuguesa, Garcia de Resende, com a publicação de Cancioneiro Geral, em 1516, também mostra apreço pela estética da verdade. Concomitante, a poesia sofre rebaixamentos perenes. Resende atribui aos versos a pecha de “a cousa somenos”.

Outro aspecto da escrita de Lopes sofre severa contribuição de Francesco Petrarca. Com desdém, o português associa “mundanal afeiçom” à subjetividade. Urge, portanto, ater-se ao tempo de vida dos homens. E, nesse ínterim, Fernão Lopes se vale da brevidade dos dias dos homens presentes na obra Secretum de Petrarca. O italiano, considerado o Pai do Humanismo, traça um estudo acerca da fragilidade ontológica do homem, “inserindo-o no domínio de uma incerteza comum a todo ser vivo[13]”. Oportuno são os trechos dele:

“A vida é curta, os seus dias incertos, o seu destino inevitável, e ele pode morrer de mil maneiras[14]”.

Petrarca coloca o homem como um ser cindido entre paixão e razão, corpo e alma. Fernão Lopes, que a despeito de rejeitar subjetividade, permeia extensos trechos de suas crônicas com aspectos emotivos dos monarcas. Azada é a narração de uma tempestade enfrentada pelo Mestre de Avis:

“Que compre sobr’esto fazer deteença, pois se per escrito dizer nom pode? (...) As gentes, quando esto ouvirom, foi o prazer tamanho em eles quanto se escrever nom poderia”.

Sente-se nessa passagem que a vida do homem, inclusive de monarcas, torna-se mais valiosa pelo fato de ser breve. O prazer em estar vivo é a marca do Humanismo e, mais particularmente, de Petrarca.

O homem humanista nega-se a viver num ascetismo puro, por crer ser impossível seguir os ditames que eram caros ao homem medieval. Petrarca classifica de “ideal difícil” a via asceta e que “o amor e a glória são duas paixões nefastas[15]”.

A presença de mais elementos na prosa de Fernão Lopes vai-se desnudando e se consubstancia na valoração de uma identidade cultural de uma nação ainda imberbe. Um ponto fulcral nisso é a construção cultural da figura do rei-fundador, na figura do Mestre de Avis, presente na obra de Lopes. É o carisma de uma personalidade, aliada à configuração mítica, que dá o substrato necessário ao êxito da historiografia dele. O momento histórico de Portugal forçava uma coalizão em torno de um novo imaginário. E Fernão Lopes buscou na Revolução de Avis espantar o fantasma de um sistema social disperso, que pusesse a perder a autonomia portuguesa diante dos reinos espanhóis.

Por isso, o empenho de erigir uma “certidom” dos acontecimentos, a fim de racionalizar o máximo possível uma época por demais instável. Luiz Costa Lima argumenta que:

“A crônica de Fernão Lopes marca uma ruptura com a tradição medieval. O fato de a Revolução de Avis elevar ao trono de Portugal um rei bastardo, aliado a setores burgueses contra uma nobreza em grande parte legitimista, permitiria a Lopes uma maior liberdade narrativa, como sintoma de uma descoberta da subjetividade e seus efeitos sobre a verdade do texto escrito[16]”.


CAPÍTULO 3 – CRÔNICAS EM FOCO

3.1. A crônica d’El-Rei Dom João I

D. João I subiu de fato ao poder com a Revolução de Avis, entre 1383-1385. a gota d’água que fez irromper a revolução foi o fato de o meio-irmão do monarca, D. Fernando, ter contraído matrimônio com a espanhola Leonor Teles. Leonor era adúltera, mas, seguindo o raciocínio de Lopes, esse foi o motivo secundário na ojeriza obtida por ela junto ao povo. O motivo mais imperativo foi a possível ingerência de Castela nos assuntos lusitanos.

Nesta crônica, Lopes dá prenúncios de como seria a prosa ficcional no quesito de ações. Ele entremeia diálogos com descrições sintéticas, as quais abordam tão somente o gestual dos personagens ali envolvidos:

“Ficando assim o Conde João Fernandes, gastava-se-lhe o coração, e tornou a dizer ao Mestre:

- Senhor, vós todavia comereis comigo.

- Não comerei, disse o Mestre, ca tenho feito de comer.

- Sim, comereis; disse ele, e enquanto vós falais, irei eu mandar fazer prestes.

- Não vades, disse o Mestre, ca vos hei de falar uma cousa antes que me vá, e logo me quero ir, que já é horas de comer.

Então se despediu da Rainha, e tomou o Conde pela mão e saíram ambos da Câmara a uma grande casa que era diante, e os do Mestre todos com ele. (...) E as palavras foram entre eles tão poucas e tão baixo ditas, que nenhum por então entendeu quejandas eras”.

Nota-se que o historiador literato consegue narrar um pretenso álibi para que o Mestre de Avis consiga assassinar o amante de Leonor Teles, o Conde João Fernandes. João I, com astúcia, livra-se da presença de Leonor e recusa as falsas mesuras ofertadas pelo amante. A narrativa moderna ficcional vale-se de um recurso ali presente nas últimas linhas do excerto: a suspense. Fernão Lopes injeta um clima de sussurros entre os homens, dando a entender que alguma contenda se armava no momento. Em seguida, o diálogo de ambos torna-se audível e é o legado para que a ação dramática se desenrole:

“- Conde, eu me maravilho muito de vós serdes homem a que eu bem queria, e trabalhardes vós de minha desonra e morte.

- Eu senhor! Disse ele, quem vos tal cousa disse, mentiu-vos mui grande mentira.

O mestre que mais vontade tinha de o matar que de estar com ele em razões, tirou logo um cutelo comprido, e enviou-lhe um golpe à cabeça; porém não foi a ferida tamanha que dela morrera, se mais não houvera. Os outros que estavam de arredor, quando viram isto, lançaram logo as espadas fora pêra lhe dar”.

A traição ficou patente e o conde não teve tempo de suster-se da morte. Tentou barganhar, mas em vão. Há espaços para especulações diante do que seria “trabalhardes vós de minha desonra e morte”. Estariam no páreo as hipóteses de que o adultério ainda era uma chaga social muito percuciente e de uma incômoda intromissão de uma espanhola nos espaços palacianos de Portugal. Nem uma nem outra conjectura pode ser descartada. O espírito de um estrita moral ainda grassava, mas o anseio de uma centralização monárquica – a valorização de uma dinastia consangüínea – igualmente possuía valor de igual monta.

Uma figura de linguagem perceptível nesses trechos e comum à obra de Fernão Lopes é o clímax. O “personagem” Mestre de Avis jamais se altera; os diálogos das vítimas da determinação de D. João I denunciam um início de hostilidades que desembocaria no homicídio. Esse paradoxo – o protagonista frio e calculista e as vítimas que vão se sucedendo – confere uma notável atualidade à narrativa.

3.2. Crônica de D. Pedro

A história do monarca D. Pedro é a que mais material oferta a um romance de índole mais subjetiva. Mas Fernão Lopes soube dosar a fatalidade que acometeu ao rei, que reinou de 1357 a 1367. Com isso, os escritos ganham em leveza e em dramaticidade.

D. Pedro era filho de Afonso IV, o qual se interpôs entre o romance do filho e de Inês de Castro, filha do fidalgo galego Pedro Fernandes de Castro. Afonso IV encomendou o assassinato de Inês, que ocorreu em 7 de janeiro de 1355. D. Pedro subiu ao trono e a primeira disposição a fazer foi aprisionar os matadores de Inês e matá-los com um sadismo peculiar. Ele foi cunhado com os epítetos de “O Cruel” e “O Justiceiro”. A dor de saudades por Inês, no entanto, não esmoreceu. E no trecho disposto a seguir, vemos uma forma pela qual o monarca buscava aplacar as dores:

“Em três cousas, assinadamente, achamos, pela mor parte, que el-Rei D. Pedro de Portugal gastava seu tempo. A saber: em fazer justiça e desembargos do Reino, em monte e caça, de que era mui querençoso; e em danças e festas segundo aquele tempo. (...) Parai mentes se foi bom sabor: jazia el-Rei em Lisboa uma noite na cama, e não lhe via sono para dormir. E fez levantar os moços, e quantos dormiam no paço; e mandou chamar João Mateus e Lourenço Palos, que trouxessem os trombas de prata. E fez acender tochas, e meteu-se pela vila em dança com os outros. As gentes, que dormiam, saíam às janelas, a ver que festa era aquela, ou por que se fazia; e quando viram daquela guisa el-Rei, tomaram prazer de o ver assim ledo”.

Na última frase, percebe-se que o povo – as gentes – partilhava do sofrimento do monarca e viam nesses arroubos de festa o desaguadouro para tantas aflições. No entanto, esse relato, assim como os outros anteriores, fala sobre o viés da obra de Lopes: um caráter regiocêntrico a regia, dado o apreço aos reis. Ainda que essa característica seja recorrente na obra fernandina, o professor Massaud Moisés chama a atenção para a abordagem humanística de Lopes sobre D. Pedro: acima de tudo, o rei era um homem e, por isso, sofria dos mesmos revezes que o povo em geral.

Igualmente, há um ensaio de cariz psicológico, pois Fernão Lopes buscava no relato de tal episódio sondar as maneiras de o monarca aplacar as saudades. Essa perspectiva viria fazer escola nos séculos seguintes e atingir o ápice, ao menos em terras brasileiras, com Machado de Assis.


CONCLUSÃO

No livro Sociedade e discurso ficcional, Luiz Costa Lima frisa que a crônica de Fernão Lopes marca uma ruptura com a tradição medieval. O ponto nodal desse feitio seria a descoberta da subjetividade e seus efeitos sobre a verdade do texto escrito. Faço presente trecho do artigo de Valdei Lopes de Araújo[17]:

“Lopes constrói uma concepção de tempo discursivo bipartido que comportaria e distinguiria as obrigações cavaleiresca e panegíricas do espaço de autonomia da narrativa histórica, a qual garantiria as premissas exigidas pela verdade da crônica”.

A crônica de Fernão Lopes move-se com o tempo. Não é mais como os romances de cavalaria ou as epopéias antigas: o tempo urge e o presente é mutável. Cai por terra, ainda, a aceitação de Lopes como um “escrivão” ou um “ordenador de histórias”, já que o cronista não se contenta apenas com a compilação do que havia visto ou lido. Nada de descrições estereotipadas: Lopes constrói seus personagens, especialmente os reis, privilegiando um relato realístico, cheio de detalhes. Exibe, sem pudor, paradoxos de conduta.

O que posso depreender de tal ensaio é a percepção de que o historiador e o letrado Fernão Lopes não se excluíam, mas tornaram-se um amálgama, que resultou num valioso documento e artefato literário. Ratifica meu ponto de vista a opinião do humanista João de Barros, o qual não via incompatibilidade entre o letrado e o historiador. Lopes é narrador e se constitui autoridade para a verossimilhança de suas histórias. Para ele, certos acontecimentos não fazem “myngua” de historiar, ver ou dizer. Essa escolha não se vincula ao estamento social, mas sim à potencialidade de verdade nas coisas acontecidas.


BIBLIOGRAFIA

MOISÉS, Massaud. LITERATURA PORTUGUESA ATRAVÉS DOS TEXTOS. Cultrix, 2002.

ARAÚJO, Valdei Lopes. A EMERGÊNCIA DO DISCURSO HISTÓRICO NA CRÔNICA DE FERNÃO LOPES. 2006. Ouro Preto (MG).

LIMA, Luiz Costa. A CRÔNICA MEDIEVAL E A ORIGINALIDADE DE FERNÃO LOPES. Rio de Janeiro. 1986.

MONGELLI, Lênia Márcia; MALEVAL, Maria do Amparo; VIEIRA, Yara Frateschi. VOZES DO TROVADORISMO GALEGO-PORTUGUÊS. Editora Íbis.

HAUSER, Arnold. HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E DA LITERATURA. Martins Fontes.

BAPTISTA, Maria Manuel. PETRARCA E A CULTURA PORTUGUESA. Coimbra, 2004.

SUSSEKIND, Flora. LITERATURA MAS COM CERTIDÃO DE VERDADE. 1984.

NIETZSCHE. GAIA CIÊNCIA. Martin Claret. 2003.


[1] Trecho de poesia de Olavo Bilac.

[2] HAUSER, Arnold. HISTÓRIA SOCIAL DA ARTE E DA LITERATURA. Martins Fontes.

[3] Escolástica: uma linha dentro da filosofia medieval, de acentos notadamente cristãos, surgida da necessidade de responder às exigências da fé, ensinada pela Igreja, considerada então como a guardiã dos valores espirituais e morais de toda a Cristandade. A filosofia que até então possuía traços marcadamente clássicos e helenísticos sofreu influências da cultura judaica e cristã, a partir do século V, quando pensadores cristãos perceberam a necessidade de aprofundar uma fé que estava amadurecendo.

[4] Anotações de aula.

[5] MONGELLI, Lênia Márcia; MALEVAL, Maria do Amparo; VIEIRA, Yara Frateschi. VOZES DO TROVADORISMO GALEGO-PORTUGUÊS. Editora Íbis.

[6] BAPTISTA, Maria Manuel. PETRARCA E A CULTURA PORTUGUESA. Coimbra, 2004.

[7] PARA A HISTÓRIA DA LITERATURA POPULAR PORTUGUESA. Lisboa, 1983.

[8] Idem, ibidem.

[9] Idem, p. 27.

[10] http://pt.wikipedia.org/wiki/Fern%C3%A3o_Lopes.

[11] SUSSEKIND, Flora. LITERATURA MAS COM CERTIDÃO DE VERDADE. 1984.

[12] NIETZSCHE. GAIA CIÊNCIA. Martin Claret. 2003.

[13] BAPTISTA, Maria Manuel. PETRARCA E A CULTURA PORTUGUESA. Coimbra, 2004.

[14] Idem.

[15] Idem.

[16] LIMA, Luiz Costa. A CRÔNICA MEDIEVAL E A ORIGINALIDADE DE FERNÃO LOPES. Rio de Janeiro. 1986.

[17] ARAÚJO, Valdei Lopes. A EMERGÊNCIA DO DISCURSO HISTÓRICO NA CRÔNICA DE FERNÃO LOPES. Junho de 2006. Ouro Preto (MG).