GilmarJunior

Textos de minha vida.

sexta-feira, agosto 22, 2008

Infortúnio

O vento erguia umas folhas ressequidas na avenida. Os carros as pisoteavam, sem piedade. Uma senhora de alpargatas, sacolas amarelas à mão, balbuciava monossílabos, os lábios se mexiam em convulsão contida. Outro senhor, o olhar aquilino buscava um ponto inexistente para todos ali. Uma mulher, a criança na mão direita, retesava o fino casaco, diante das invectivas do vento um pouco frio. Meus pêlos do braço eriçavam-se.

Um ônibus dourado virou, os vidros refletiam as pesadas nuvens, que assustavam os incautos sem guarda-chuva. A mulher foi a primeira a acenar. Como dominós em desabalada queda, a porta estreita não era páreo para tantas pernas a subir. Lembrei-me, as moedas na mão cerrada, de um velho adágio bíblico, dito como chiste pelos meus velhos, a fim de pungir as diabruras infantis. “Tornou, pois, Jesus a dizer-lhes: Em verdade, em verdade vos digo: eu sou a porta das ovelhas”. Mas que rebanho disforme lhe era dado!

Entram sem cerimônia, os olhos fixos num espaço a ser buscado. Quiçá houvesse um lapso de ar para os dedos viverem lépidos. Roçavam-se sem consentimento, sem estreiteza.

A roleta me parecia um sonho distante. Tudo era cinza, um fogo campeou pelos saiotes de mau gosto e ali ficaram os despojos. Doía-me a mediocridade do ônibus. Haveria tantos outros, assim novos, de estofados coloridos. E subsistiriam neles as velhas de turbante, uns tecidos desbotados de idade e de qualidade ruim. As crianças faziam uma higiene porca, as mãozinhas esfregavam rostos convulsionados.

Joguei as moedas nas mãos do cobrador, cujos olhos aquilinos contavam mentalmente a pífia quantia. Foram segundos longos, como uma serpente no rio, abafada pelo celebrar do sol dos passarinhos.

Perscrutei um lugar vago. Em vão. Bancos já previamente aquecidos, tudo fatigado pelo peso de rostos que jamais veria novamente. O mundo é uma carrossel infinito. Deus sempre me oferece cartas novas; o baralho dele parece não ter regra.

Soergui minha mão sobre a cabeça e, débil, busquei um cilindro de ferro amarelo como esteio. Suponho que os motoristas possuem uma séria mácula de caráter. Eu vi que o senhor olhara pelo retrovisor, baixara os olhos e, sem reprimir um ricto afortunado, afundara o pé direito no acelerador. Ao trote do bailo, uma dança inaudita tomou conta dos corpos eretos. Busquei os olhos dele, sem êxito. Respirei pesadamente, à moda de tísicos. Nada de o motorista me olhar. Eu sorriria, para mostrá-lo o malogro de seus desígnios sádicos.

Fiquei alheado do desconforto do coletivo, quando uma senhora tentou passar a roleta. Ela enfiou as mãos no avental, já preenchendo com os quadris o espaço da catraca. Uma fila indiana se formara atrás dela. O tilintar dos metais não deixava em paz o rosto enegrecido dela. Havia uns sulcos profundos, daqueles que canalizariam eventuais lágrimas. Com certeza, seria um espetáculo vê-la chorando.

Um murmúrio se ergueu da frente do ônibus. O queixume assumiu forma num uníssono. As pessoas precisavam descer. Éramos todos doentes, urgia ir ao posto de saúde. Somente a doença incute forças terminais a quem já desistiu de viver.

A negra tirou as mãos do avental e as levou à boca. A pobreza não escamoteia apenas o material: ela é perversa e despe os acometidos por ela de toda austeridade vocabular. A senhora, de saiote degolado, adquiriu olhos amarelos. Tartamudeou, a princípio. Ergueu as mãos diante do cobrador, desculpando-se pelo engano. Faltou-lhe apenas jurar que não seria embuste.

Um garoto levantou-se detrás de mim. Era igualmente negro, mas sem carquilhas na face. Trouxe minha bolsa junto a mim, num ato invito de preconceito. Arrependi-me depois, e minha mão granjeou uma força menos rija para segurar meus pertences. Ele não me roubaria, pensei.

O rapaz enfiou os dedos na puída calça e sacou o valor exato da passagem. Estendeu as moedas; a senhora, em dor plangente e atônita, não notou a investida. Um homem, visivelmente agastado, tocou-lhe o ombro. A negra foi lançada contra a roleta. E assim acordou do drama pessoal.

Pegou as moedas da mão flutuante. Entregou-as ao cobrador, despejando saliva e mesuras exageradas. A fila sumiu.

Desci junto ao burburinho. Não olhei para trás, enfastiou-me a viagem. Uns pingos órfãos começaram a cair do céu. Chuva tola e frouxa, pungia-me ainda mais. Logo eu, admirador das intempéries e exageros da natureza. Se for para molhar sem me empapar, que a chuva vá embora.

Torci os dedos para que não houvesse fila. Cerrei os olhos para que as pessoas sumissem. Exceto o médico. O meu médico. O rasgo de egoísmo desaguou em um quase sorriso. O saguão estava vazio. Fui ao guichê. Pediram-me a identidade. Botei a mão no bolso de trás. A carteira havia sumido.

Incontinenti, saí de lá, a atendente, fria como mármore, sequer articulou um “senhor?”. A chuva se dissipara, o solo estava manchado como um dálmata. A carteira estava deitada, ainda mantinha o brilho do couro preto. Fui até lá, quase acabrunhado para pegá-la do chão. “Minha”, disse-me uma voz esganiçada. Subi os olhos e vi o rapazote do ônibus. Não sorria, tinha um toco de navalha na mão que outrora passara moedas à senhora em apuros. Volvi-me, sem palavra. Não se deve dar as costas para o inimigo, veio-me. Voltei-me para ele. Os olhos dele tremiam. Ele padecia em parecer-me mau.

Num arroubo, pus a mão sobre a carteira. Ele ensaiou um ataque. Tirei as notas, sem esboçar proteção e joguei-as ao léu. Ele as pegou no ar, a lâmina morreu no esquecimento de ambos.

Não pensei no dinheiro e vi o jovem de costas, a correr. Minhas notas talvez serviriam para outra senhora em apuros.

Conto escrito por Gilmar Luís (professorgilmarluis@gmail.com)