GilmarJunior

Textos de minha vida.

sábado, maio 20, 2006

Revanche? – por Gilmar Júnior – 17 de maio de 2006

Após os quatro dias de uma guerra civil declarada, a polícia paulista reúne forças de um âmago combalido pela tragédia e mata mais de 30 bandidos. O primeiro sentimento que aflora é o de dever cumprido. O Código de Hamurabi – “olho por olho, dente por dente” – retorna na modernidade, mostrando a todos que o século XXI será de plangentes contrastes.

A polícia, talvez a vítima mais imediata dessa barbárie, tenciona um revés, mesmo impregnada de componentes por demais passionais. Os políticos, mais uma vez, recostam-se em cômodos sólios, tão incólumes quanto os imponentes castelos medievais. Num rompante inerente à parca inteligência que lhes fora ofertada, o Congresso fala em medidas anticrimes. A miopia intelectual que me abomina é também compartilhada pelo professor de Sociologia da Universidade da Califórnia, Loic Wacquant. Francês, com 46 anos, Loic emitiu um parecer sombrio: os ataques dos bandidos vão acontecer novamente.

Loic publicou quase uma dezena de livros sobre as desigualdades sociais no Brasil e o combalido sistema carcerário do país. Vencedor do prêmio “gênio dos gênios”, patrocinado pela Fundação MacArthur nos EUA, o sociólogo aponta soluções que caíram no domínio público como expedientes eficientes no combate ao crime. Educação, emprego e aparato social para os pobres são os meios simples para, em primeiro plano, mitigar a celeuma dos cidadãos brasileiros. Mas são olvidados pela casta política em todas as esferas de poder do Brasil. O único político que mencionou algo análogo a isso foi o pré-candidato à presidência pelo PDT, senador Cristovam Buarque. Se lhe falta carisma (substrato para outra matéria, a ser redigida em momento oportuno), verteu-lhe um azado lampejo de sapiência.

O governador de São Paulo, Cláudio Lembo, do PFL, alçou as raias máximas do cinismo, ao afirmar que “havia tomado todas as providências necessárias” para, ao menos, dirimir os efeitos dos atentados. Lembo recusou a ajuda do governo federal, que se mostrou pusilânime também. Imbuído da autoridade de presidente, Lula deveria repudiar os falsos pejos do político do PFL. Arbitrariedade, diriam alguns. Mas seria o sentimento visível de um chefe de Estado que se diz oriundo das camadas populares. Em menos de um mês, a palavra de Lula não estremece mais as vastas terras brasileiras. O presidente da Bolívia, Evo Morález, que o diga.

As ações elencadas pelo sociólogo francês não ressoam nas políticas dos governos paulista e federal por surtirem efeitos em longo prazo. Não é com cotas para negros e índios que o Brasil deixará o marasmo educacional de tanto tempo. Não é com fuzis de longo alcance que o salário do trabalhador poderá comprar os meios básicos de uma vida digna. Tudo começa por baixo: o ensino fundamental, seguido pelo médio. Mas, infelizmente, os bons frutos frutificam, em média, num prazo de 20 anos. Até lá, Lula, Cláudio Lembo, José Dirceu, Geraldo Alckmin, etc estarão com os bolsos abarrotados de tanto dinheiro público desviado. Uma pena para nós. Uma benesse para a súcia eleita por nós mesmos.

Por isso, os logros cometidos pela PM de SP não merecem o alarde que tantos teimam fazer. O presidente da Associação dos Cabos e Soldados da Polícia Militar do Estado de São Paulo, Wilson Morais, movido pelos brios feridos, arrolou que a demissão do secretário de Segurança de SP, Saulo Abreu Filho, faz parte das mudanças iminentes do sistema policial paulista. Seja no futebol, seja na política, o fato de cabeças rolarem é apenas paliativo. O que interessa é o funcionamento da engrenagem do sistema (ou os onze jogadores em campo). Se as peças não têm o préstimo necessário, merecem ser trocadas. E, isso sim, conduz a reformas estruturais. A começar pela visão tacanha dos políticos, que encontra respaldo no pânico que assola o cidadão comum.

domingo, maio 07, 2006

Morte do socialismo, por Gilmar Júnior – 7 de maio de 2006.

A queda do Muro de Berlim, em 1989, representou o golpe mais nevrálgico no socialismo mundial. Mas todo corolário de distorções do mundo comunista apenas principiava a ser desnudado para o restante do planeta. Na Romênia, do fuzilado Ceauscecu, uma família de quatro pessoas tinha de viver com apenas uma lâmpada. A situação se torna mais dramática ao ressalvar o quão rigoroso é o inverno romeno.

De 1989 até agora, o socialismo esmorece. Fraqueja até mesmo diante de redutos rijos de outrora. O PT é um deles. Como disse um brasileiro: “Quem gosta de pobreza é intelectual; o povo quer é luxo”. E o ex-metalúrgico Lula encarna esse espírito com afinco. Dotado de um guarda-roupa de fazer inveja a Silvio Berlusconi – no tocante ao número de ternos Armani – Lula exibe hábitos de um nababo. Ainda que os artifícios sintáticos permaneçam simplórios, o presidente candidato insiste em transitar por dois mundos inconciliáveis: o proletariado e a burguesia. A única premissa marxista que subsiste é que não pode haver enlace de qualquer ordem entre uma e outra classe. Uma relação cão e gato.

O socialismo, no entanto, pipoca em pagos não tão distantes. O presidente boliviano Evo Moralez mostrou à América Latina que tem colhão. Numa política adversa à cumprida pelo PT (que oferta lucros vultosos aos bancos), Evo cumpre à risca a plataforma de campanha: nacionalizar o maior trunfo da Bolívia, as riquezas minerais. Não adiantou Lula dirimir o impacto de tal ação: os preços do gás serão reajustados, mais cedo, ou mais tarde. Na vizinha Bolívia, um dos países mais pauperizados da América, assistimos a um respeito incomum aos pressupostos do socialismo. O PT realmente vai ficar vermelho. Vermelho de vergonha.

Desligo o noticiário e vou-me deter em ler os jornais impressos. No âmago, rio num ricto tímido, mas esperançoso de que o socialismo poderá vingar as mazelas do capitalismo. Lembro-me do furacão Katrina e as avarias não só nas cidades sulistas dos EUA, mas na propalada imagem de bonança do território ianque. A pobreza campeia entre os negros. O capitalismo, mesmo que gere riquezas e opulência, permanece tacanho e concentrador.

Minha mente remoia esses fatos quando me deparo com uma pequena notícia, proveniente de agências internacionais. Não recordo ao certo se era da Reuters ou da AFP, mas meus olhos ficaram embaciados naquelas curtas linhas. O ditador Fidel Castro detém a 7ª maior fortuna dentre os governantes mundiais, com 900 milhões de dólares. O espanto se imiscui entre meu coração e meu cérebro: mas por quê? Em Cuba, todos são iguais! A inocência folgou de novo em minha alma. Por pouco tempo. Não me espantaria ler que Fidel consumisse rombudos sanduíches do MC Donalds.

Meu mundo ruíra em menos de dez minutos. Em um dia, mais um golpe funesto nos meus sonhos, na minha esperança. 2006 começou com a exasperação do circo dos horrores que fora em 2005. No Brasil, deputados livram os comparsas sem pudor. Alguns chegam a dançar no plenário, diante dos holofotes da imprensa. Vergonha? Isso virou qualidade de virgem enlutada, daquelas presentes em obras tão antigas quanto Marx. E o alemão, autor de “Proletários do mundo, uni-vos”, deve estar chorando no túmulo.

Um trecho de uma canção de Cazuza fez-me corar. “Meus heróis morreram de overdose, meus inimigos estão no poder”. O cantor e digno poeta carioca está quase correto. Meus inimigos estão realmente nos sólios elevados: os canalhas que ocupam o posto mais eminente da nação com subterfúgios e engodos. Mas meus antigos heróis não morreram de overdose. Eles se suicidaram por pura sem-vergonhice mesmo.

quinta-feira, maio 04, 2006

FAMINTO POR OUTRAS COISAS, por Gilmar Júnior, em 3 de maio de 2006.

Juvenildo Jovencino nasceu sob os auspícios de Deus. A mãe encomendou o sucesso do parto à Santíssima Trindade. Enquanto ofegava para parir a cria, Dona Carola resmungava o Pai Nosso, entremeado a gemidos plangentes. Dilatou-se tanto que a criança chorona estreou no mundo num átimo.

Juvenildo cresceu, mas fez poucos amigos. Queria ser notável. Dona Carola batia com a Bíblia nos dedos dele, quando sumiam as moedas do cinzeiro. Não era assim que um cristão obteria seu espaço. Dedos roxos, joelhos sobre o milho e silêncio compulsório no quarto eram os artifícios da pobre mãe com intuito de moldar um bom cordeiro.

O garoto aprendeu a mentir. Sem saber, caiu nos subterfúgios canalhas para fugir da opressão materna. Penteava o cabelo dividindo-o ao meio, com gel. Preto como a asa da graúna, Juvenildo esforçava-se para não amarrotar o terno carmesim usado nos domingos. A mãe levava-o à missa mal o garoto completara 4 anos. Insuflado pela sinceridade pueril, Juvenildo enxaguava o rosto com lágrimas de protesto, a Igreja era-lhe martírio. Enfatiotado, odiava todos aqueles procedimentos de conduta dominical. Ansiava pelo barro, pela poeira.

Lembram-se dos subterfúgios? A puberdade não trouxera apenas acne ao rosto imberbe. Juvenildo não detestava ficar rubro de vergonha com os tapas nas mãos. Aprendeu a disfarçar. Dona Carola aceitou a mudança de comportamento com a mão no coração. A velha mordeu o lábio, subiu os olhos ao céu em agradecimento à providência divina. O filho mudara. Para ela, a promessa de encomendar Juvenildo à Incólume Trindade surtira efeito.

Juvenildo passou a vestir o terno nos domingos com afinco. Quando a mãe limpava a casa, ele metia a Bíblia embaixo do braço. Dirigia-se ao quarto, desculpava-se com Dona Carola, mas frisava que o silêncio aproximava-o de Deus. A genitora sorria, esquecia as dores das costas enquanto polia o chão da sala.

Trancado no quarto, Juvenildo atirava a Bíblia longe, mas antes a abria aleatoriamente. O jovem aprendera o poder das frases coercitivas. “Não matarás”, “Não comerás carne de porco”, “Não adulterarás”, “Não serás o homem mulher de outro homem”. Tudo que principiava com “não” ou que encerrava grandes castigos era-lhe caro. Juvenildo comprou um pequeno caderno, cuja capa era uma pomba branca, para despejar as tantas punições.

Um dia, na missa dominical, ele ergueu o braço. O pastor o chamou para o púlpito, surpreso com a mudança do mutismo dele de outrora. Juvenildo abriu o seu caderno. Cuspiu no chão ao lembrar o quão podre se tornara a sociedade. Cada frase punitiva da Bíblia fazia as mais idosas torcerem os terços com contumácia. Os homens meneavam a cabeça, concordando com o rapaz. Dona Carola inundou o próprio colo com lágrimas de orgulho. O filho agia como um santo. Um santo vingador.

Juvenildo fechou o caderno com força, ribombando o som pela sacristia. Baixou os olhos, soltou um largo suspiro. A platéia, enternecida com o prevaricado sofrimento do falso pregador, irrompeu em palmas. Todos ficaram de pé. Ele, jactando-se de falsa modéstia, foi até o banco de madeira, beijou a face úmida da mãe e sentou-se em silêncio. Um santo de fato, para os ali presentes.

Os dias passaram céleres. O rapaz completou os anos de responsabilidade civil. O pastor chegou até Juvenildo e instigou-lhe, no ouvido, a possibilidade de o rapaz ser um político. Os olhos com restolhos pueris brilharam, mas ele soube disfarçar. Levou a mão à boca, fez-se de espantado. A alma, no entanto, chicoteava a abóbada celeste de tanto gargalhar.

O caderninho de proibições sucumbiu diante de um computador portátil. Juvenildo não apenas proibia uma série de comportamentos, mas impingia os discursos com flama odiosa. Apontava pessoas, citava grupos sociais. Aborto, homossexualidade, biquínis cada vez mais diminutos, um balaio de sortilégios era o chamariz de tanta saliva perdida.

Uma moça da Igreja foi instigada pelos pais a acenar-lhe com um lenço. Margaridinha Miosótis era branca, um belo contraste com as compridas madeixas. Casaram-se sem cerimônia: os pais da garota viam a ascensão de Juvenildo como graças para toda a família. Margaridinha não era boba. Na noite de núpcias, reiterou a virgindade e suplicou para que Juvenildo a deflorasse com calma e parcimônia. Penetrá-la pelo vaso traseiro não fora nem cogitado.

Tiveram dois filhos, nos quais a gana de onipresença fora-lhes gotejada. Juvenildo, após governar uma unidade da federação de Vera Cruz, passara o cetro para Margaridinha. Com a Bíblia na mão, o laptop na outra e imbuído de um dedo em riste, ele angariou inimigos e amigos. Estes injetaram dinheiros de origem duvidosa no desejo maior de Juvenildo: governar a Terra de Vera Cruz. Acossado por cavaleiros da Ética, uma instituição de foro essencial mas que andava por maus bocados no país, Juvenildo chorou as pitangas no colo combalido da mãe. Dona Carola encheu os dedos com tufos de cabelos do filho e contou-lhe as travessuras do passado. Ela riu-se ao recordar um dia em que Juvenildo não meteu uma garfada sequer na boca, pisando firme para não ir à missa.

O atual político viu a meninice brincar nos próprios olhos. Despachou a mãe com escusas doces. Ligou para Margaridinha e contou-lhe o plano: as acusações sumiriam se ele, Juvenildo, fizesse uma greve de fome. A esposa o aplaudiu do outro lado da linha. Novamente, ele poria as faces ilesas de vergonha em rede nacional.

A Terra de Vera Cruz acompanha o terceiro dia da propalada greve de fome de Juvenildo. Margaridinha vai todos os dias visitá-lo na Igreja, lugar escolhido por ele para pungir ainda mais os difamadores. Ela leva apenas uma bolsa junto ao corpo. As amigas de Dona Carola ocupam as calçadas do templo, os terços nervosos para que as injúrias sumam das costas de Juvenildo. A epopéia do pequeno notável assume contornos dramáticos: ele concede dez minutos de entrevistas a todos os canais, exceto para os repórteres da maior emissora do país. Fica, todos os dias, aquele gostinho de quero mais. Mas, só no quarto dia da greve de fome.