GilmarJunior

Textos de minha vida.

segunda-feira, novembro 20, 2006

PEDAGOGIA DO NEGRO E LITERATURA NEGRA

1. Prelúdio

O termo pedagogia encontra-se, no senso comum, vinculado a práticas direcionadas ao público infantil e adolescente. A etimologia de “pedagogo”, léxico oriundo do grego, significa “acompanhante de crianças”. As técnicas, no entanto, frutificaram e alçaram a pedagogia às práticas educativas em um domínio determinado, sem distinção de faixa etária. A moderna ciência pedagógica desenvolveu-se, desta forma, no sentido de promover a capacidade de raciocínio e julgamento do educando, ressaltando-lhe a criatividade e fomentando a orientação livre.

Contudo, o saber pedagógico destinou-se a erigir um caráter incólume ao imaginário escravocrata, que vigorou durante mais de 350 anos no Brasil. O imaginário é mais eficaz que um exército sempre alerta. Maquiavel, na obra-prima “O Príncipe”, dedica vários capítulos para demonstrar que o medo é mais efetivo que o amor ou sentimentos análogos. O pensador italiano buscou incutir nos monarcas absolutistas a tática de promover o terror entre os subalternos, como medida ideal para manter perene a submissão.

No Brasil, a estrutura escravocrata foi uma das poucas instituições que se manteve homogênea por três séculos e meio. A razão de tal feita deve-se, em muito, à chamada “pedagogia do medo”, implantada desde a captura do negro até o despejo aos milhões nas terras americanas.

2. A pedagogia do medo

O libambo pode ser considerado a apresentação de uma pedagogia adversa aos cativos africanos. Os negros capturados na África eram atados em fila, pelo pescoço, por correntes, chamadas libambos. Os navios negreiros sinalizavam o estatuto de mercadoria que vincaria a vida dos negros. Aos cativos que se submetessem sem reservas aos maus-tratos eram dispensadas algumas benesses, como água, cachaça e um pouco de fumo.

Os colonizadores falavam no imperativo aos negros. Palavras frívolas eram evitadas. A pedagogia do medo assumia contornos definidos e se legitimava graças a uma efetiva mão dupla de opressor e oprimido: o negro cria na inferioridade e o branco supunha ser um ente superior.

Na colônia, o espaço físico promovia a vigência do segregamento. A senzala estava abaixo da casa-grande. Nas praças principais das cidades do Brasil Colônia, era comum um pau de sebo que servia para prender um negro a ser açoitado. O exemplo vivo de sangue escorrendo e de gemidos foi uma fórmula perspicaz para que a maioria cativa não tencionasse mudar o status quo.

Nos séculos XVI, XVII e XVIII, o encargo de tal pedagogia ficou, majoritamente, ao encargo dos padres católicos. O padre Antônio Vieira, destaque do Barroco no Brasil e em Portugal, promoveu em sua vasta obra lições que explicavam a patente inferioridade do negro. Vieira distorceu uma passagem bíblica e afirmou que os negros eram descendentes de Cam, filho de Noé. Cam viu o pai nu e, ao em vez de cobrir-lhes as vergonhas, fez troça de tal situação. Como punição, Deus teria escurecido a pele de Cam.

O padre português foi mais longe. Pregava o catolicismo nas senzalas e prometia aos cativos que eles teriam a recompensa por uma vida submissa ao morrerem. Vieira valia-se dos suplícios de Cristo para incutir nos negros a subserviência aos desmandos.

O negro configurava-se, assim, em mercadoria, em alma que merecia ser adestrada e de mão-de-obra sem valor. Por isso, uma bestialidade acometeu muitos africanos: ao desembarcar no Brasil, eram marcados a ferro quente com o sinal do comprador; outra marca com o sinal da Coroa; e, por último, uma pequena cruz. Outro padre, o italiano Antonil, considerado o primeiro economista do Brasil, escreveu um tratado sobre a cultura de cana-de-açúcar. Nele, a cana assumia o papel de sujeito; Antonil chegava a comparar as canas verdejantes a cútis de moçoilas brancas e virgens. O negro, para o padre, era apenas a coisa, que poderia até mesmo macular uma cana tão viçosa em mãos abrutalhadas.

Falar em literatura para o negro no Brasil Colônia é um contra-senso, já que a imprensa apareceu apenas em 1808. Todos os livros antes dessa data eram oriundos da Europa. Portanto, eram caros e em número reduzido. Apenas filhos de senhores de engenho e mineradores puderam ter algum acesso às letras. Para o crítico Antônio Cândido, o movimento literário no Brasil principia com o Arcadismo; Cândido exclui o Barroco – que nos legou Gregório de Matos – da linha sucessória de escolas literárias brasileiras. Ele apregoa este viés baseado na relação de livro, autor e público leitor, tríade inexistente nos primeiros séculos de colonização.

3. A manutenção de uma hegemonia

O pensador italiano Antonio Gramsci, que resiste à derrocada do marxismo no mundo, trouxe um conceito interessante no século XX: a hegemonia. Gramsci fala na disparidade atual de propriedade. Nada mais comum a pensadores avessos ao capitalismo. Mas o italiano agrega a informação à entidade propriedade, propondo que a manutenção de uma sociedade de classes assim o é graças ao aparato de uma ideologia dominante, divulgada pelas classes dominantes. Eis que surge o conceito de hegemonia.

Com o advento da Abolição da Escravatura, em 1888, não houve um rompimento de pensamento. O término do trabalho forçado atendia a anseios do capitalismo gestado na Inglaterra desde 1750, quando foi deflagrada a Revolução Industrial. O Brasil, desde a independência política, não registrou um movimento xenófobo que acometeu nações asiáticas e africanas saídas do jugo colonial. No Quênia, a rebelião dos Mau Mau (Fora! Fora!) deixou mais de 10 mil mortos e, em 1963, abriu caminho para a independência do país frente aos ingleses.

O Brasil assistiu a uma constituição de uma nação de forma menos ruidosa. A busca pela identidade nacional, alavancada por escritores românticos, buscou um similar ao herói medieval que estava em voga na Europa dos dois primeiros quartis do século XIX. A escravidão ainda estava em voga, o que retardou a aparição do elemento negro como protagonista de romances.

A terceira geração romântica – a partir de 1850 – aliada a uma expansão da prosa regionalista fomentou um olhar literário para o africano. Mas, ressalta-se, que tal espectro não chegou a todos os autores indiscriminadamente. Podemos justapor os romancistas Bernardo de Guimarães, José de Alencar e Castro Alves. O primeiro, com o romance “Escrava Isaura” pecou pelo protuberância amorosa num tema tão controverso que era a escravidão. Isaura era branca, mas possuía o sangue eivado de linhagem negra.

Alencar jamais deixou de aflorar seu veio conservador, tanto na política, como na literatura. O conto “Demônio Familiar” tenciona ser comédia, mas permite que se veja uma singela defesa ao escravismo na visão de um negro alforriado, que teria de arcar com o ônus da liberdade.

A posição de Castro Alves é de pranto e celeuma diante das condições subumanas do tráfico negreiro. Com poemas “Vozes d’África” e “Navio Negreiro”, Alves tornou pública a discussão da abolição da escravatura, concomitante ao surgimento de grandes jornais com os lucros obtidos pela estabilidade econômica do Segundo Reinado. Datam dessa época os jornais Estado de São Paulo e do Comércio (do Recife-PE).

O surgimento da problemática do negro catalisou a decadência do Romantismo, com seus heróis nacionais e uma incipiente busca de nacionalidade, para a percepção do movimento realista e naturalista. Romances e contos como “O Cortiço”, “O Mulato”, ambos de Aluísio de Azevedo; “O caso da vara”, de Machado de Assis; e “O Bom Crioulo”, de Adolfo Caminha trazem o negro como elemento natural e integrante da sociedade brasileira. Não deixam, no entanto, de frisar o racismo impetrado pelos brancos, sentimento potencializado pelas teorias evolucionistas em voga.

O Pré-Modernismo e o Modernismo propriamente dito alçaram ao cenário nacional todo um corolário de contradições da brasilidade. Além do negro, apareceram as figuras dos retirantes nordestinos, dos favelados, dos grandes usineiros, dos latifúndios. Forçosamente, as leis brasileiras trataram de agasalhar o comportamento racista e segregacional como crime.

4. Outras formas

As formas de racismo afastam-se de maneiras militantes de ódio às outras raças, salvo algumas seitas e agremiações criminosas, como White Power. Essas configurações estão sendo gradualmente substituídas pela preocupação em revelar as formas menos evidentes e mais difundidas de racismo, formas estas que reproduzem atitudes discriminatórias sem desafiar a norma social de indesejabilidade do racismo.

Nesta perspectiva, Sears e Kinder (1971) falm-nos acerca da teoria do racismo simbólico. Esta tipologia inédita seria composta, por um lado, pela afirmação de valores igualitários (próprios do pós-modernismo) e, por outro lado, pela oposição (sempre em nome de valores pós-modernistas) a políticas congruentes com os valores igualitários. Esse fato vem a inibir ações afirmativas para os negros (cotas, literatura específica, etc) sob a efígie de ferir a igualdade garantida em cláusulas pétrias da Constituição Federal.

Mas não há uma voz hegemônica no sentido de modificar maneiras, fatos e hábitos secularmente arraigados a uma sociedade outrora escravocrata. Segundo Hélio Santos, mestre em finanças pela USP e militante de movimentos negros, o Brasil assiste a uma incomunicabilidade entre dois países. Santos ratifica sua tese ao lembrar um fato corriqueiro: elevadores para os moradores dos prédios de luxo e outro para os empregados, majoritamente negros. Uma empregada doméstica no Brasil transita em espaços confeccionados para os serviçais da casa-grande, numa clara preocupação arquitetônica de preservar as áreas chamadas sociais de uma residência. Em construções de alta renda, em suma, executa-se uma profilaxia do ambiente dos patrões ante uma invasão do proletariado. Constituído por trabalhadores negros, diga-se de passagem.

No mercado de literatura, há pequenos alentos para a construção de uma identidade negra, que force uma nova pedagogia da cor. A editora Ática, fundada em 1965, vem cumprindo um papel cidadão ao trazer o tema do racismo em livros destinados ao público infantil. A série Vaga-lume, que veio à luz no início dos anos 70, mostra uma ousadia de uma editora. O tema do negro, contudo, apareceu apenas nos anos 80. Um livro interessante neste viés chama-se “Nó na garganta”, de Mirna Pinsky. Mirna trata de uma família negra que busca melhores empregos e se refugia no litoral norte de São Paulo. Com o tempo, a filha do casal vai-se integrando às crianças do vilarejo, a maioria pobre e que vivem da pesca. As famílias abastadas, que chegam nas temporadas de férias de verão, trazem consigo o germe do racismo. As crianças do vilarejo decidem, enfim, de qual lado irão ficar: do racismo dos filhos dos ricos ou da identidade social com a menina negra.

O racismo apoiou-se, por séculos, de uma pedagogia que vinha de cima e era ingerida pelos que estavam embaixo. O negro obteve como aliada a miscigenação do povo brasileiro, que multiplicou em diversas nuances de cor a desigualdade social que, em pleno século XXI, leiga ao Brasil a incômoda 10ª posição na desigualdade socioeconômica. Ao negro uniram-se as reivindicações de um conceito amplo e difuso de pardos, que perfazem mais da metade do povo brasileiro.

segunda-feira, novembro 06, 2006

O sol enobrece – por Gilmar Luís – 6 de novembro de 2006.

Houve um guarda-sol solitário na praia. Também pudera. O céu plúmbeo fechava o cenho para que a areia do mar fosse revolvida sob pés peraltas. O único artefato de veraneio nem das cores vibrantes do verão fazia uso. Era igualmente cinza.

Ela saiu da casa de veraneio, após o término do Jornal da Band. Era dia, uma maravilha impetrada pelo horário de verão. Tomou o guarda-sol largado na soleira da porta. Não procurou por esteira, bronzeador, cesta de quitutes. Queria aproximar-se de Deus. A costa gaúcha, retilínea, desagrada a muitos veranistas. Mas, naquele momento, era-lhe azada. De um lado, as ondas se perdiam em rebentações compassadas. De outro, uma revoada apressada de gaivotas sinalizam um vazio sem fio na malha plúmbea.

Volveu a cabeça duas vezes. Divisou os dois elementos descritos. Sorriu, apertou as mãos umas nas outras. Esmagou nos lábios: “Só Deus sabe o que faz, quando faz e por que faz”. Dito em uníssono, caiu num choro convulso. Virou-se costas. Uma mulher sem dentes, alquebrada pela imundícia e pela faina da esmola, catava latinhas de alumínio largadas a esmo pelos turistas. As cordas lacrimosas engrossaram, era como um portentoso rio, que não dava margem a algum afluente.

Pensou em tirar algum trocado do bolso, mas saiu sem provisões. A reportagem apresentada pelo jornalista Ricardo Boechat tomou-lhe as vistas. Pausadamente, com voz inflexível, Boechat afirmou que os servidores do Poder Judiciário gozam de 6 meses de folga, além de ostentarem dividendos mensais superiores a R$ 12 mil. Um trabalhador comum, salientava a matéria, tinha de sobreviver com parcos R$ 1.030.

Não suportou tamanha avalanche de disparates. Desligou a TV, empunhou o guarda-sol que jamais faria oposição a um astro-rei escondido naquela tarde nebulosa. Do ser humano, a não tão jovem moça havia descartado quaisquer sentimentos virtuosos. Remorso, pensava ela, jamais acometeria corações egoístas como os do Judiciário. A moça balbuciou o próprio nome, cada sílaba entrecortada de um soluço compulsório: Es-pe-ran-ça.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Morte duas vezes – Gilmar Luís – 2 de novembro de 2006.

A reeleição de Lula foi saudada por muitos como a manutenção de um projeto de esquerda no país mais importante do Hemisfério Sul. Engodos à parte, o ex-metalúrgico ratifica a criação de uma nova ideologia, mais pragmática, e a extinção total do discurso sindical do irreconhecível Partido dos Trabalhadores.

Votei em Lula em 2002, mesmo com rijas ressalvas. A primeira delas era a coligação com o PL, uma sigla secularmente do setor empresarial e avessa a quaisquer concessões trabalhistas. A segunda – e mais contundente – é a aproximação paradoxal com o clã Sarney. Nos anos 80, Lula, então deputado federal, não teve papas na língua ao afirmar que José Sarney é um ladrão. Hoje, os dois trajados em ternos Armani trocam mesuras.

Morreu o PT. A última resistência de esquerdismo no partido foi extirpada a pontapés. Lembram-se de Heloísa Helena, Luciana Genro, Babá e João Fontes? Pois bem, eles pareciam uma nódoa no atual PT, um partido de elite. Elite sim, mas com um discurso cheio de oxímoros. Os marqueteiros petistas tomam de empréstimo o populismo de Hugo Chavez para a manutenção da farsa.

A cada mandato, um novo disparate. O do primeiro quadriênio já fora mencionado. Alguns dias após a reeleição, Lula cogita a participação do empresário gaúcho Jorge Gerdau no novo ministério. Gerdau vai integrar um corpus de profissionais do naipe de Henrique Meirelles, cuja reputação vem sofrendo refregas constantes. Acabou-se o sindicalismo. Sucumbiu o discurso apaixonado. O ex-metalúrgico come como um abade e larga os ossos para o proletariado indefeso.