GilmarJunior

Textos de minha vida.

domingo, setembro 26, 2004

O troco.

O ônibus subia o morro com o ronco do motor abafando meus pensamentos. Um dia de sol, mas sem tanto calor. Também pudera, era o primeiro dia de primavera. O céu lindo, num azul pintado à mão, contrastava com a morosidade daquela subida.
Estava ao lado da roleta. A subida vagarosa parecia contagiar a todos, passageiros, motorista e cobrador. Mais uma parada. Sobe uma senhora, cabelos grisalhos em desalinho, três sacolas cheias de frutas na mão esquerda. A mão direita procura um pedaço de metal para se apoiar.
Ninguém a observava, menos eu. O rosto suava, ora pelo esforço de segurar o peso das frutas, ora pelo fardo de aturar aquele ônibus onde só o motor e as portas faziam um discurso metálico e áspero. Um vestido de tecido tão fino, que parecia rasgar-se a qualquer momento, não lhe apertava. Magra, as vestes folgavam por todo o corpo e balançavam ao sabor de seus movimentos. Ela, aos trancos, desvia-se dos idosos que lotavam a frente do coletivo. Pára na roleta, põe a mão no bolso frouxo e puxa uma nota de 20 reais.
O cobrador, até então sonolento, arregala os olhos. “Nossa, não tenho troco pra isso”, a voz meio engasgada dispara para a senhora presa na roleta. “Mas como? E agora?”, foi a defesa da mulher.
Os olhos de ambos se fitavam. Os segundos pareciam-se arrastar na mesma toada da viagem. Dinheiro, no entanto, tinha a mágica de pedir uma solução rápida. Urgia o desfecho do impasse.
O ônibus parou no semáforo, quase no final do morro. A senhora esboçou um sorriso, tão débil quanto a sua paciência. O cobrador, cabisbaixo, procurava nos bolsos uma quantia que cobrisse o troco. Quando, num átimo, um outro ônibus, em sentido contrário, desce o morro.
Tão repentina quanto a aparição do outro coletivo foi a reação do cobrador. Levantou-se do assento e, sem pedir licença aos passageiros que lotavam o corredor, correu até a janela e berrou: “Ô, não tem troco pra vinte?”. O cobrador do outro ônibus fez um aceno positivo e começou a juntar as notas e as moedas que tinha à mão.
Até então morosa, a viagem adquiriu uma outra vida. A lotação máxima portava-se como platéia da agonia da senhora e do troco. O cobrador do ônibus a descer estendeu a mão para o nosso, para alcançar as notas e as moedas. O nosso cobrador esticava os dedos. Uma mulher, também próxima da roleta, tira o rosário da bolsa e ora para que o dinheiro não caia. A senhora, das sacolas de frutas e do troco pendente, torcia os dedos. O sinal vermelho do semáforo há muito se fora. Uma fila de carros se formava atrás dos dois ônibus. Os cobradores, em questão de centímetros, buscavam as suas mãos. E as buzinas, mais altas que os motores parados, faziam suar o rosto de todos. Carros queriam sair dali, o troco tinha de ser obtido.
O cobrador, atrás de mim, contorcia-se, os dentes rangiam sem fazer barulho. Esticava-se de um lado, mexia-se de um lado para outro, para frente. Ganhava centímetros importantes para tomar o maldito troco, que atrasou a viagem de todos, mas clamava por um desfecho. E o final chegou aos dedos úmidos dele, ao tomar o dinheiro devido.
A senhora na roleta fechou os olhos, em sinal de alívio. Uma criança, sentada no último banco, faz irromper um aplauso. Logo é acompanhada por quase todos. Os ônibus seguem seus itinerários, a fila indiana não entendeu as mãos do lado de fora dos vidros.
O cobrador volta ao assento, entrega o troco para a pobre senhora e a viagem retoma seu rumo. Desta vez, não tão sonolenta. A subida havia acabado e murmúrios apareciam, face à epopéia trazida por uma nota de vinte reais.

domingo, setembro 19, 2004

O alvorecer.

Sempre relutei muito em criar um blog. Sei lá, expor o que se passa comigo em uma página virtual sempre me pareceu por demais explícito. Tipo ser visto urinando.
A analogia ruim tenta explicar o medo de outrora. Porém, li o blog de uma amiga e o achei tão terno e meigo... incitou-me a fazer o mesmo.
Por enquanto, é isso. Mas prometo contar histórias. É só viver para contar (perdoe-me Garcia Marquez).