GilmarJunior

Textos de minha vida.

quinta-feira, maio 04, 2006

FAMINTO POR OUTRAS COISAS, por Gilmar Júnior, em 3 de maio de 2006.

Juvenildo Jovencino nasceu sob os auspícios de Deus. A mãe encomendou o sucesso do parto à Santíssima Trindade. Enquanto ofegava para parir a cria, Dona Carola resmungava o Pai Nosso, entremeado a gemidos plangentes. Dilatou-se tanto que a criança chorona estreou no mundo num átimo.

Juvenildo cresceu, mas fez poucos amigos. Queria ser notável. Dona Carola batia com a Bíblia nos dedos dele, quando sumiam as moedas do cinzeiro. Não era assim que um cristão obteria seu espaço. Dedos roxos, joelhos sobre o milho e silêncio compulsório no quarto eram os artifícios da pobre mãe com intuito de moldar um bom cordeiro.

O garoto aprendeu a mentir. Sem saber, caiu nos subterfúgios canalhas para fugir da opressão materna. Penteava o cabelo dividindo-o ao meio, com gel. Preto como a asa da graúna, Juvenildo esforçava-se para não amarrotar o terno carmesim usado nos domingos. A mãe levava-o à missa mal o garoto completara 4 anos. Insuflado pela sinceridade pueril, Juvenildo enxaguava o rosto com lágrimas de protesto, a Igreja era-lhe martírio. Enfatiotado, odiava todos aqueles procedimentos de conduta dominical. Ansiava pelo barro, pela poeira.

Lembram-se dos subterfúgios? A puberdade não trouxera apenas acne ao rosto imberbe. Juvenildo não detestava ficar rubro de vergonha com os tapas nas mãos. Aprendeu a disfarçar. Dona Carola aceitou a mudança de comportamento com a mão no coração. A velha mordeu o lábio, subiu os olhos ao céu em agradecimento à providência divina. O filho mudara. Para ela, a promessa de encomendar Juvenildo à Incólume Trindade surtira efeito.

Juvenildo passou a vestir o terno nos domingos com afinco. Quando a mãe limpava a casa, ele metia a Bíblia embaixo do braço. Dirigia-se ao quarto, desculpava-se com Dona Carola, mas frisava que o silêncio aproximava-o de Deus. A genitora sorria, esquecia as dores das costas enquanto polia o chão da sala.

Trancado no quarto, Juvenildo atirava a Bíblia longe, mas antes a abria aleatoriamente. O jovem aprendera o poder das frases coercitivas. “Não matarás”, “Não comerás carne de porco”, “Não adulterarás”, “Não serás o homem mulher de outro homem”. Tudo que principiava com “não” ou que encerrava grandes castigos era-lhe caro. Juvenildo comprou um pequeno caderno, cuja capa era uma pomba branca, para despejar as tantas punições.

Um dia, na missa dominical, ele ergueu o braço. O pastor o chamou para o púlpito, surpreso com a mudança do mutismo dele de outrora. Juvenildo abriu o seu caderno. Cuspiu no chão ao lembrar o quão podre se tornara a sociedade. Cada frase punitiva da Bíblia fazia as mais idosas torcerem os terços com contumácia. Os homens meneavam a cabeça, concordando com o rapaz. Dona Carola inundou o próprio colo com lágrimas de orgulho. O filho agia como um santo. Um santo vingador.

Juvenildo fechou o caderno com força, ribombando o som pela sacristia. Baixou os olhos, soltou um largo suspiro. A platéia, enternecida com o prevaricado sofrimento do falso pregador, irrompeu em palmas. Todos ficaram de pé. Ele, jactando-se de falsa modéstia, foi até o banco de madeira, beijou a face úmida da mãe e sentou-se em silêncio. Um santo de fato, para os ali presentes.

Os dias passaram céleres. O rapaz completou os anos de responsabilidade civil. O pastor chegou até Juvenildo e instigou-lhe, no ouvido, a possibilidade de o rapaz ser um político. Os olhos com restolhos pueris brilharam, mas ele soube disfarçar. Levou a mão à boca, fez-se de espantado. A alma, no entanto, chicoteava a abóbada celeste de tanto gargalhar.

O caderninho de proibições sucumbiu diante de um computador portátil. Juvenildo não apenas proibia uma série de comportamentos, mas impingia os discursos com flama odiosa. Apontava pessoas, citava grupos sociais. Aborto, homossexualidade, biquínis cada vez mais diminutos, um balaio de sortilégios era o chamariz de tanta saliva perdida.

Uma moça da Igreja foi instigada pelos pais a acenar-lhe com um lenço. Margaridinha Miosótis era branca, um belo contraste com as compridas madeixas. Casaram-se sem cerimônia: os pais da garota viam a ascensão de Juvenildo como graças para toda a família. Margaridinha não era boba. Na noite de núpcias, reiterou a virgindade e suplicou para que Juvenildo a deflorasse com calma e parcimônia. Penetrá-la pelo vaso traseiro não fora nem cogitado.

Tiveram dois filhos, nos quais a gana de onipresença fora-lhes gotejada. Juvenildo, após governar uma unidade da federação de Vera Cruz, passara o cetro para Margaridinha. Com a Bíblia na mão, o laptop na outra e imbuído de um dedo em riste, ele angariou inimigos e amigos. Estes injetaram dinheiros de origem duvidosa no desejo maior de Juvenildo: governar a Terra de Vera Cruz. Acossado por cavaleiros da Ética, uma instituição de foro essencial mas que andava por maus bocados no país, Juvenildo chorou as pitangas no colo combalido da mãe. Dona Carola encheu os dedos com tufos de cabelos do filho e contou-lhe as travessuras do passado. Ela riu-se ao recordar um dia em que Juvenildo não meteu uma garfada sequer na boca, pisando firme para não ir à missa.

O atual político viu a meninice brincar nos próprios olhos. Despachou a mãe com escusas doces. Ligou para Margaridinha e contou-lhe o plano: as acusações sumiriam se ele, Juvenildo, fizesse uma greve de fome. A esposa o aplaudiu do outro lado da linha. Novamente, ele poria as faces ilesas de vergonha em rede nacional.

A Terra de Vera Cruz acompanha o terceiro dia da propalada greve de fome de Juvenildo. Margaridinha vai todos os dias visitá-lo na Igreja, lugar escolhido por ele para pungir ainda mais os difamadores. Ela leva apenas uma bolsa junto ao corpo. As amigas de Dona Carola ocupam as calçadas do templo, os terços nervosos para que as injúrias sumam das costas de Juvenildo. A epopéia do pequeno notável assume contornos dramáticos: ele concede dez minutos de entrevistas a todos os canais, exceto para os repórteres da maior emissora do país. Fica, todos os dias, aquele gostinho de quero mais. Mas, só no quarto dia da greve de fome.