GilmarJunior

Textos de minha vida.

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

Nem carnaval, nem Copa - por Gilmar Luís Silva Júnior, em 23 de fevereiro de 2006.

No século XV, o Brasil era a personificação do paraíso. Uma sociedade formada por almas encarnadas pelo mito do bom selvagem. Uma terra não crivada pelas artimanhas da civilização. O depositário ideal para mentes carcomidas pelas doenças sociais.
Os anos passaram céleres e os desatinos, plantados paulatinamente pelos europeus, frutificaram e conceberam a segunda sociedade mais desigual do planeta no quesito distribuição de renda. Um país continental, mas unido por ardis tão seculares e, por isso, enraizados no imaginário popular. Do Monte Caburaí (o ponto mais setentrional do Brasil) até o Chuí (o mais meridional), todos os estratos sociais se valem de olhos oblíquos, de sussurros módicos cheios de malícia e de um cinismo dramatúrgico para edificar o propalado “jeitinho brasileiro”. Desde a tenra idade, aprende-se a burlar o olhar inquisidor dos professores e, assim, granjear boas notas no colégio. O detentor de bons dribles e de chutes portentosos atrai para si a esperança e o arrebatamento de uma nação. Já os parcos universitários que conseguem o diploma não merecem tamanho tento. Para eles, resta uma disputa insensível no mercado de trabalho, sendo costumeiramente ultrajados com remunerações exíguas.
O Brasil vive um desatino de prioridades. O país mergulha numa letargia de poucos dias de festa, quando na época de Carnaval. Ou se transmuta nos pagos da Esperança, em momentos de Copa do Mundo. No restante do ano, o que se vê é uma refrega do povo com o governo, que só é ruim e incompetente com o aval quase divino das massas.
Anualmente, nenhum mês é tão aguardado como fevereiro. O céu desnudo da grande nação brasileira parece ser a cortina para o espetáculo da folia, que embebe a maior parte dos cidadãos de bem (e aqueles assumidamente ruins também). Gastam-se três ou quatro meses para a confecção de carros alegóricos, que alegram os olhos de quem vê e enchem de orgulho o coração de quem os concebeu. Os olhos circundados de manchas arroxeadas não teimam em esconder a fadiga de noites em claro. Tudo menos isso: a fadiga é um sinal de altivez perante os membros de uma escola de samba. “Cheguei a passar fome para comprar a fantasia”, uma frase de inculcado disparate, mas muito em voga durante a folia do Carnaval.
Passam os dias mágicos e o brasileiro cai nos dias medíocres de março. Começam as aulas e toda sorte de subterfúgios e técnicas para se obter uma singela vaga no ensino público (fundamental ou médio). A massa, que era só sorrisos na Sapucaí, xinga, brada e esperneia. Frases de falso teor político brotam da boca desdentada de muitos brasileiros: “o governo não constrói escolas”. Ficar na fila por amor aos filhos é sacrifício, assim encarado quando fora da magia de estar horas esperando para entrar num estado de apoteose carnavalesca. O povo reclama alguns dias e o ritual anual se completa: nenhum político corrupto foi demovido das polpudas tetas da política, situação que, mais cedo ou mais tarde, levará a Terra de Vera Cruz à bancarrota. O brasileiro, sem pestanejar, dispara: “político não presta”, senta-se no sofá (se o tiver) e arqueia as sobrancelhas, solene. Assim feito, livra-se da responsabilidade durante boa parte do ano. Dói demais pensar no cotidiano funesto: deixe essas contendas para mentes que não passam por tantos percalços.
Outro momento em que os malefícios de ser pobre e subdesenvolvido são olvidados é a época de Copa do Mundo. Músicas, jingles, bandeirolas, o verde-amarelo: a moda segue esses preceitos e valores. Contestar, com um cenho severo, é sinal de mau agouro. Calem-se os críticos dos governos: político dá a mão para o favelado, num círculo imbuído de parca e torpe esperança. O caneco de campeão, caro brasileiro, não põe comida na mesa, mas remata uma taquicardia boa, daquelas que devem acometer a todos os afortunados. Se a taça da Copa vem para os trópicos, é um indício rijo e contundente de que o Brasil pode dar certo: somos a potência em um esporte onde o drible e a estratégia valem o lugar mais alto do pódio. No drible, não é necessário divisar os passes mágicos de Pelé para enxergar a habilidade do brasileiro: aqui, driblam-se os impostos, as tarefas escolares e a vergonha. A estratégia é outro item onipresente e onipotente na vida do brasileiro: como sair de uma dívida posando de bom moço?
A saída de tantas vidas canhestras perpassa por uma catarse coletiva. O brasileiro poderá criticar, a menos que seu telhado esteja incólume de trapaças e ardis. Poderá ainda requerer um nível de vida digno, desde que arregace as mangas para edificá-lo. O estudante deverá falar da má índole de um professor, salvo se a conduta discente for impoluta.
Os maiores inimigos das virtudes do brasileiro – os Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário – articulam entre si meios de tornar eternas as vantagens escusas que possuem. O ex-desempregado e atual presidente, Lula, está em campanha desde o raiar de 2006, valendo-se de todo o aparato que o cargo lhe confere. Os deputados aqui no Brasil não respondem por seus crimes em um tribunal civil; possuem, sob olhos arregalados de alguns, o tal do “foro privilegiado”. A justiça brasileira é lenta e conivente com as tramóias das esferas políticas. Porém, sustentar os salários etéreos do Poder Judiciário demanda o pagamento de R$ 118 de cada brasileiro. Sendo que muitos cidadãos (?) não conseguem ganhar essa quantia.
Por isso, nem Carnaval, nem Copa. Espero que chovam canivetes na Sapucaí e que o Brasil seja goleado pela Croácia. Com dor no peito e aviltado no orgulho, o brasileiro pode, enfim, dedicar-se a seus problemas domésticos.