GilmarJunior

Textos de minha vida.

domingo, fevereiro 19, 2006

Um deslize imperdoável, por Gilmar Luís Silva Júnior, em 19 de fevereiro de 2006.

O impacto das charges do profeta Maomé vem esmorecendo a cada dia. O que realmente permanece é a sensação de que a justiça não foi feita. Justiça, em mundo que concebe a engenharia genética e que engendra ódios tribais, é uma ação que se olvidou há muito tempo. Ser justo é uma qualidade que se refugiou em organizações não-governamentais, cujos brados de piedade obtêm olhares apenas curiosos da comunidade internacional.
Entre conversas informais, auferi que o senso comum de muitas pessoas vê as manifestações públicas muçulmanas como fruto de mais uma manobra militar. “Nossa, como essa gente adora uma confusão”: tornou-se epígrafe de como os árabes são vistos. Um povo encrenqueiro. O imaginário popular encontra respaldo na seleção de publicações que a grande imprensa brasileira leva aos lares do país. Conquistas dos países árabes jamais ocupam os preciosos segundos dos noticiários. Já a sentença de morte do escritor Salman Rushdie, autor de Versículos Satânicos, e o assassinato de Theo van Gogh, diretor do filme Submissão (sobre a violência islâmica contra as mulheres), debatem-se nos jornais impressos e falados. Correspondentes de notáveis emissoras batem o martelo: os muçulmanos são hostis à democracia e ao respeito aos direitos humanos.
Uma carta anônima, que chegou à Comissão de Direitos Humanos da ONU em 1998, relata o sofrimento infligido às mulheres afegãs pelo antigo regime Talibã. Ela relata que mulheres não podem ir às escolas, não devem usar sapatos e são confinadas aos lares. A aparição das atrocidades do Talibã trouxe alívio às moças do Ocidente. Mas a história de tanta intolerância pertence ao mesmo lado da moeda que abarca as sociedades ocidentais, ditas democráticas. O Talibã chegou ao poder graças aos portentosos dólares enviados pelos EUA, na sua antiga rixa com a ex-URSS.
Foi sob a égide do insignificante reino da Dinamarca, um país perdido no Norte da Europa, que o fato das charges se converteu em problema. Um país com quase 6 milhões de pessoas entrou no centro do vórtice ideológico entre Islã e Ocidente.
Torna-se azado o adágio: nos menores fracos, estão os piores venenos. A pequena Dinamarca é um país racista. Dinamarqueses que se casam com estrangeiros são obrigados a viverem no Sul da Suécia até a decisão de Copenhague de permitir ou não o casal de viver no diminuto país, que conta com 400 mil emigrantes e seus descendentes. O jornal Jyllands-Posten não publicou as charges inocentemente. O editor de Cultura do periódico, Flemming Rose, corrobora as intenções político-ideológicas de tal ação. “Isto tudo é sobre a questão de integração e o quão compatível é a religião do Islã com a sociedade moderna”, afirmou. Passou despercebido para o Ocidente que um grupo islâmico dinamarquês pediu, pacificamente, que o jornal se desculpasse. O primeiro-ministro da Dinamarca, Anders Fogh Rasmussen, se negou a receber uma delegação de 11 embaixadores muçulmanos. Anders alegou “falta de tempo”. Não seriam falta de vergonha e a mais pura covardia?
A Dinamarca, a grande protegida das farpas dos noticiários acerca desse imbróglio, é governada por partidos de direita desde 2001. Isso significa que ações federais contra os estrangeiros vêm sendo sistematicamente realizadas. O próprio premier do país defende a invasão do Iraque, ao manter 700 soldados no Oriente Médio. E ele pretende dobrar esse contingente militar.
Pobres árabes. Sem direito aos microfones, passam pelos percalços da edição maldosa da grande imprensa ocidental. Os alaridos de multidões muçulmanas são “os novos hunos” que afligem o Ocidente, tão preocupado em fingir a aplicação dos Direitos Humanos. A hipocrisia do G-8 e de outras nações que se intitulam desenvolvidas me dá náuseas. Foi da Europa que vieram os maiores crimes contra a Humanidade: o racismo, a colonização, o nazismo, a xenofobia. Com tamanhos disparates, o Museu do Louvre, por exemplo, criado com artefatos subtraídos de países milenares, perde a força cultural que nele se encerra. Aquelas cidades modernas, com arranha-céus e parques asseados, são a sede de pensamentos vis, histriônicos e ignóbeis. Um alento deve ser dito à Europa e aos demais “ricos”: vocês sugaram o bem mais valoroso de milhões de pessoas – a cidadania – em proveito de uma riqueza que não se traduziu em compaixão ou em verdadeiro conhecimento. Samuel P. Huntington, professor de Harvard, salienta que os embates do século XXI não serão entre nações, mas sim entre culturas. O Ocidente que se cuide, pois a entidade “cultura” não possui endereço certo para o envio de mísseis teleguiados.