GilmarJunior

Textos de minha vida.

quarta-feira, outubro 08, 2008

Angústia



O professor falou-lhe que seria um insigne escritor. “Dou-lhe apenas o tempo”, disse, os livros à mão, a pressa nos olhos. Ficou na sala vazia. Pé ante pé, os minutos roçavam nos ponteiros como a lassidão em digerir tal elogio.
Empertigou-se, a mochila cobriu-lhe as costas em alinho. Ganhou a rua, o céu azul lhe parecera mais perto. Poderia alçá-los com as mãos? Não sabia, tampouco se deteve nessa demanda. Quimera ou não, a fama acudi-lo-ia em apuros de estima.
Voltou-se para a rua, o ônibus não chegava. A euforia quedou-se. O medo apossara-se dele. O que fazer até lá? Haveria vida pré-fama? A unha menor começou a sucumbir diante das invectivas dos dedos maiores. O que seria dele até a descoberta? Entraria com mais desconhecidos, rostos convulsionados de cotidiano, que não compartilhariam a vitória eminente. Mas eminente quando? Contava nos dedos um tempo imensurável, sem pistas. Apenas lhe aliciavam. A tal fama, não saberia divisar-lhe o rosto.
Veio a condução, entrou nela empurrado pelo marasmo dos outros. Não precisava contar notas, o cartão lhe salvou desse embaraço. Ao léu, achegou-se a um banco, tão aleatório quanto os pensamentos. Esqueceu a mochila nas costas, parecia um matuto.
O som do motor ditava-lhe os pensamentos. Quis voltar à aula, procurar o professor, inquirir-lhe uma data precisa. Quando seria a redenção? A janela estava pouco empoeirada, havia chovido por aqueles dias. O sol tímido não secara a terra em absoluto. Portanto, a poeira não se ergueria de pelotão completo. Era recém segunda-feira.
Viu-se no vidro. Estranhou os ombros acabrunhados, nada lhe pesava para estar tão vexado. Porém, o vazio lhe açoitava com ardor. A viagem, transfigurada em via-crúcis, mostrava um cenário acinzentado.
Essa fama. Ouvira dela tantas definições, alguns rumores e poucas certezas de como obtê-la. Ruminava cenas de holofotes em mansões imaginárias, mãos erguidas como escudos e rictos de cólera. Ao largo, passavam-lhe sombras obscuras, cujas origens lhe fustigavam a imaginação já assoberbada de preocupações.
A cabeça vergou-se nas palmas das mãos. Suspirou alto, olhos vizinhos caíram-lhe nos ombros. Quisera viver para sempre no ocaso, estar imerso num ostracismo indigesto, mas tudo isso seria suportável se o fosse desconhecido.
Quis procurar o céu. As casotas não lhe embaraçavam o desígnio. Pululavam pequenos cristais, a luz cegara-o por instantes. Tudo branco, supôs a visão de um anjo. Haviam lhe contado que todos os seres benévolos seriam brancos. Crespou o cenho, em represália às lembranças.
Não logrou êxito em entrever Deus. Ele não o ajudaria, se não ouvisse seu propósito, seu problema, sua angústia. Restabelecida a visão, o medo de uma vida medíocre lhe invadira novamente, com efeito de borrasca após anos de bonança. Cobiçou os lunáticos do prédio carcomido e quedo do hospício, que vagaroso se exibia aos passageiros do coletivo. Eles não tencionavam coisa alguma. Cada loucura era um espetáculo único e inédito. Eis a razão por que todos enlouquecem em algum estágio dessa inconstante toada.
Uma senhora quebrou-lhe o amofinamento. Sequer a olhou, imputou-lhe severos anos pelo perfume de sabonete que ela exalava. O colar da mão direita dela tilintava a cada solavanco.
O olhar buscava um ponto o qual não podia exprimir nem sugestionar. Abriu a mochila. Lançou no colo uma página, com um conto curtíssimo. Pôs-se a ler, esquecendo a senda da avenida.
Demorou os olhos no derradeiro ponto final, quando sua letargia perde-se no passado graças à exclamação da senhora ao lado. “Nossa, até eu me angustiei”, disparou. Sem ponderar uns olhos incrédulos que se esboçavam, ela arrematou: “Tem jeito de escritor”.
Um gosto mau encheu-lhe a boca. Apertou o olhar, que ficou no mesmo ricto da boca insípida. A velhinha, sem suspeitar de tantos torvelinhos naquela cabecinha, piscava em petição de conversa.
Guardou a folha única. Os olhos não o deixavam levantar-se, balouçavam num vórtice inesperado. Os segundos, ainda que poucos, pareciam imensos, uns totens de concreto maciço, a ameaçá-lo com a derrocada iminente.
Esqueceu a velha, levantou-se, sem pedir licença. Tampouco se virou: a senhora o ameaçara com uns olhos viperinos de desdém.
Ia confiante, descer num ponto que não era seu. A mão levada à altura do estômago, os olhos espremidos e um silvo agudo antecederam sua queda ao chão do ônibus. Caiu de joelhos, a cabeça buscava um anteparo. Os olhos esqueceram-se das angústias por um momento. A dor suplantara os anseios de sua alma.
Buscou a idosa outrora ignorada. Os olhos dela não lhe eram mais perversos. Cambaleante, ela se chegou, os braços lhe pareciam asas de anjo. Chilreou algo ao pé do ouvido. A dor, contudo, deixara-o imobilizado; mas não havia esvaído de si o egoísmo de antes.
Veio célere e fora lépido o mal-estar. De joelhos, não ouvira coisa alguma dos passageiros. Apenas buscou o céu, coberto por um teto de aço malbaratado pelo uso perene. Pensou estar num genuflexório contrafeito.
Livrou-se dos braços providenciais, sem contentar a curiosidade dos presentes. Acenou para a velhinha, a contragosto. O fel da dívida lhe impelira o braço num gesto mecânico e frio.
Apertou a cordinha e quis descer. O teatro da dor fora-lhe a gota d'água do opróbrio em público. Achar-lhe-iam louco, tresloucado, perturbado. Até pensou ter visto uma mulher de saia comprida, com folhetos evangélicos em riste. Os olhos que fingiam paz falavam num Deus que parecia mais distante a cada segundo de angústia.
Até ilusões o atemorizavam. Já ao ar livre, não sabia onde estava. Não havia conhecidos onde descera. Pôs a mão no bolso, sentiu a falta de algo. Olhou para trás, próximo à calçada jazia a carteira. Riu-se e, lentamente, foi até lá. Abaixou-se, não gostava da foto do documento. Atestava uma época ruim, de uma doença que quase lhe impedira o sonho de estudar.
Alumbrado com tais memórias, um carro ultrapassou uma carroça e, sem tempo de frear, bateu-lhe na cabeça. A batida girou-lhe rápido. A têmpora direita afundara. Veios de sangue tingiram-lhe o cenho, que não demonstrava dor, arrependimento ou culpa. Estivera feliz, ao olhar a foto e perceber que permanecia vivo após a descoberta de uma doença tão inesperada. O corpo caiu poucos segundos após a colisão. O carro não parou.

2 Comments:

  • At sábado, 01 novembro, 2008, Blogger Well said…

    Muito obrigado por visitar meu blog! Seu blog é muito interessante. Não li esse último texto porque eu estou passando com pressa, mas leio assim que tiver um tempinho. Abraços.

     
  • At sexta-feira, 04 dezembro, 2009, Blogger Unknown said…

    Gilmar, as coisas são assim mesmo.
    Incertas, mas precisas!
    Um grande abraço!

     

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