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Textos de minha vida.

quinta-feira, março 30, 2006

Requebra, sim – por Gilmar Luís Silva Júnior – 30 de março de 2006

A deputada Ângela Guadagnin, do PT paulista, dançou. A cada investida dos quadris canhestros, Ângela soçobrou os últimos resquícios de coerência de um partido cuja sigla se vale de um setor social secularmente combalido por práticas mesquinhas e coloniais de espoliação. Não havia uma trilha sonora específica para a dança inoportuna. Ângela ergueu-se ao som inaudível da impunidade, um malogro que se instaura em diversos símbolos públicos do Brasil.
A absolvição do colega deputado João Magno se converteu apenas no estampido que deflagrou a cruel apresentação no Congresso. O saracoteio de Ângela é o auge de uma situação concebida há algum tempo. Há bons anos, o PT vem dançando num compasso diverso de tudo que outrora personificou. Uma ruptura nesse sentido me avassalou ao ligar a TV e ouvir nos telejornais que a equipe econômica de Lula recebeu elogios do FMI, a instituição capitalista mais viçosa no pós-guerra. Em 1972, uma revista de finanças norte-americana estampou que o Brasil é o latino-americano preferido para investimentos. Na época, a ditadura encontrou mais subsídios para tornar genuíno o “milagre brasileiro”. Mais de 30 anos depois, Lula sobe ao púlpito e propala que o país jamais esteve tão “estabilizado”. Esse conceito de estabilidade me remete ao que o sociólogo Émile Durkheim preconizou: a sociedade é perfeita quando não há disfunções sociais.
É notório que há disfunções sociais no Brasil, a nação que mais violenta seus cidadãos ao exibir opulência e miséria em espaço de poucas quadras. O que Durkheim se referia era a ausência de movimentos discordantes de uma ordem social pré-estabelecida. Esse status quo brasileiro tem 506 anos. E, nos raros momentos em que fora contestado, levou, além de porrada, a pecha de ações subversivas.
Muitos hão de torcer o nariz e dizer que o Brasil é um país no trilho da modernidade. Coitados desses, que volvem o rosto para um lado perverso do capitalismo: a incrível capacidade de regenerar-se de crises agudas, através da criação de novas necessidades. Não existe coisa mais sinistra que presenciar uma família que mal ingere as 2500 calorias diárias aconselhadas pela FAO (órgão da ONU responsável pela alimentação no planeta) juntar as migalhas de um parco salário e parcelar um celular de última geração. Aí reside o poder do capitalismo. A inversão de valores entre os verbos “ter” e “ser” é o recurso vulgar que os príncipes capitalistas imiscuem numa sociedade que, cada vez menos, entende a avalanche de informações que lhe enche os olhos. Ter a roupa da última moda configura-se no mote de vida de milhões de pessoas. Comprar um bom livro, alimentar-se bem, etc., tudo isso que confere mais valia ao “ser” foi sorrateiramente varrido para um purgatório olvido.
E o capitalismo, na sua roupagem século XXI, conta com um pensamento tão antigo quanto o próprio homem: o maniqueísmo. Maldito seja o momento em que fora engendrada a saída em apenas duas vertentes que se opõe vertiginosamente. Os gregos dividiam o mundo entre os povos helênicos e aqueles chamados de bárbaros, homens que não compartilhavam da língua e da cultura da Hélade. A Idade Média ofereceu a Deus fumaça de corpos carbonizados pela Inquisição, pela divisão entre católicos e hereges. Refutar o discurso dominante numa ótica maniqueísta é um exercício de verborragia e lógica que redunda, quase sempre, no fracasso. E, não raro, em morte.
E o nosso governo federal vai na esteira desse momento tão peculiar da pós-modernidade. Lula alçou o posto mais elevado do Brasil adotando uma estratégia antípoda a tudo que sempre recorreu como conteúdo programático do partido. Quando o atual presidente possuía uma barba mal-feita, uma cútis marcada pelo sol e uma mão vibrante aos movimentos sociais, enquadrava-se no lado perverso da política brasileira. No pleito de 1989, a vitória de Fernando Collor se apoiou na imagem de um homem jovial, praticante de esportes e que prometia conduzir o país devassado por uma inflação galopante de forma segura. Desde então, os discursos petistas vêm perdendo alíneas importantes, como o apoio irrestrito aos agricultores sem-terra. A palavra “comunismo”, banida sem qualquer cerimônia, foi logo entendida pelos tecnocratas do PT como “o eixo do Mal”, no maniqueísmo vigente há séculos.
Em 2002, o PT possuía apenas 22 anos, mas trajava ternos Armani. Lula ostentava uma barba grisalha, mas impecavelmente escanhoada, uma tez rósea. Com certeza, o presidente ingeria mais calorias que nos anos oitenta. A aliança com o PL, sigla que carrega a palavra “liberal” como simples adorno, foi o aval que os conservadores precisavam: votem no PT, eles vieram para o “nosso” lado.
O que torna interessante a ainda incolumidade do presidente Lula é o artifício por vezes valoroso e pérfido usado pelos técnicos do PT. Ainda que o partido esteja mergulhado em corrupção e esquemas ilícitos, a imagem de Lula é mantida irretorquível como o chefe da Nação. Associado à inocência, Lula segue os preceitos de colegas mais sábios ao divulgar que nada sabia. Com voz embargada, o presidente fala em traição, em golpe, em tantos conceitos vagos, mas que encontram poderosa receptividade nos corações de muitos brasileiros.
Reza o senso comum que uma pessoa sem grandes vôos intelectuais não consegue participar de intricados esquemas de corrupção, de traição e de outros fins. Aí a blindagem do presidente se torna até galvanizada contra a ferrugem. Lula nunca poderia ter auferido lucros escusos por ser alguém do povo. Embora use roupas de boa marca e beba champanhes afamados, o ex-metalúrgico continua cometendo deslizes que o identificam com o brasileiro comum. Olhar as fartas nádegas de uma dançarina, andar de skate, torcer pelo Corinthians, entre outros fatos pitorescos, leva o presidente a um estado de verossimilhança com o povo. Para que questioná-lo? A culpa é dos outros.
Num maniqueísmo com nuances que apenas nos trópicos vingam, o PT dança ao som da impunidade, mas se mantém com certa firmeza no comando da nação. São poucas as pessoas que, como eu, sentiram-se aviltados no seu sonho de mudar os 506 de colonialismo. Não esperava, claro, um milagre. Foi-se a época em que o Brasil era a terra sem pecados. Esperava, sim, um líder do Terceiro Mundo, imbuído de intenções mais próximas do Hemisfério Sul. Lula, por favor, esqueça um pouco o deslumbre pela Europa e pelos EUA.