GilmarJunior

Textos de minha vida.

quarta-feira, novembro 23, 2005

Quem queima os carros é o neoliberalismo

Falar em globalização é cair em uma armadilha maniqueísta e num erro conceitual. A cilada é crer que o ambiente globalizado foi profetizado pelo canadense Marshall McLuhan, nos anos 50-60. O mundo vive numa teia íntima desde a conquista de Ceuta, na África, pelos portugueses, no final do século XV. As propaladas grandes navegações colocaram diante da Europa o restante do mundo. O canibalismo planetário advém dessa época. Achar “bom” ou “ruim” a globalização é questão de classe social. Políticos, ex-sociólogos, demagogos oriundos da classe operária, revolucionários de papel, etc tentam minimizar as críticas perenes ao modelo global. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso deu de ombros à comoção contra a globalização e cuspiu: “Isso é inevitável”. Os que criticam a “aldeia global” sofrem de um problema simples, mas persistente: não apontam um terceiro caminho que seja realmente viável. Muitos insistem no comunismo soviético, que dá seus últimos suspiros na miserável ilha de Cuba.

Embora as críticas à globalização (e ao seu componente ideológico, o neoliberalismo) sejam tachadas de ingênuas, não se pode dissociar delas o caráter romântico e inflamado. O intelectual norte-americano Noam Chomsky, em seu livro O Lucro ou as pessoas, apela para essas vozes que, segundo ele, estão sendo caladas pela ditadura ideológica neoliberal. Sim, ditadura e neoliberalismo estão intimamente ligados, ainda que a etimologia dos dois termos seja muito díspar. A concentração de 80% dos meios de comunicação no Brasil nas mãos de dez famílias é produto e filho do neoliberalismo. Para não acender um fósforo dentro de um celeiro cheio de pólvora, a política neoliberal posa para as fotos como amiga da liberdade. A única amizade que o neoliberalismo se presta é a com o capital volátil, que muda de país com apenas um e-mail.

E o neoliberalismo conta com o adágio popular para se manter e justificar a derrocada do serviço público como provedor de justiça social. Quem já não ouviu o estribilho tudo que é público é ruim e inoperante? Imbuído dessa “paixão nacional”, o Estado brasileiro se livra de empresas, vendendo um patrimônio nacional aos sequiosos ricos e poderosos. E a gula destes remontam a do horrendo capitalista nos primórdios da Revolução Industrial, a partir de 1750, na Inglaterra. Nos governos Lula e FHC, a venda das estatais superou R$ 100 bilhões. Esse montante seria aplicado em melhorias para os 58% de brasileiros pobres, conforme dados da CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Mas o uso mais visível do dinheiro outrora público é para a prática de Mensalão e de outros artifícios menos elegantes de corrupção.

O Brasil não é, no entanto, o palco ideal para mostrar as contradições do neoliberalismo e a necessidade urgente de uma terceira via. Estamos ainda fora do rol das ditas “nações civilizadas”, como EUA, França, Inglaterra. Mesmo que os EUA queimem livros de Biologia que ensinem a teoria da evolução, tudo em nome dos fundamentalistas cristãos. Mesmo que a França assista a batalhas campais entre franceses descendentes de imigrantes e franceses que se julgam de sangue azul. Mesmo que na Inglaterra um brasileiro tenha sido morto por armas banidas dos efetivos ingleses, pelo insólito e pungente poder de fogo desses artefatos.

Detenho-me na França, dos vinhos maravilhosos, da Côte-d’Azur e da Torre Eiffel. Desde 27 de outubro, a morte de dois jovens nas cités (bairros pobres de Paris) transformou esse belo país na França dos xenófobos, dos ignorantes e dos intolerantes. Essas duas baixas foram o estopim para que uma realidade miserável tomasse forma e gritasse por seus direitos junto ao poder público francês.

A deputada e líder da Luta Operária francesa, Arlette Laguiller, culpa os governos de direita, de centro e de esquerda pela convulsão social na França. Arlette ainda lembra que a diminuição do poder do Estado francês, ao abdicar de impostos sobre os grandes conglomerados, levou o país a um esquecimento de políticas públicas que realmente integrassem as diversas etnias. Maior benefício aos megaempresários não trouxe melhorias no nível de empregos. Na França, a taxa de desemprego está acima dos 10%, mas atinge 40% nas periferias das cidades maiores.

Diante da crise social, o governo francês (formado pelo xenófobo Le Pen e pelo racista Sarkozy) tratou de agir. Mas arregaçou as mangas olhando para trás. O toque de recolher remonta à época do império, no século XVIII. A verdade nua e crua – que o neoliberalismo extirpa segmentos cada vez maiores de pessoas do círculo de cidadãos – ainda não foi dita pela alta cúpula, não só da França, mas de todos os integrantes do G-7. Nem todos no planeta querem entrar numa máquina de fazer gente. Um tipo de gente que apenas consuma, que seja acéfala, que seja sem cor.