GilmarJunior

Textos de minha vida.

sexta-feira, setembro 30, 2005

Câmara

A fumaça do bife ainda quente desenha figuras surrealistas no ar, diante do próprio nariz. Um almoço ardente, arroz, feijão, um belo bife, rodelas vermelhas de tomate. Um copo à frente traz um suco de maracujá, seu predileto. Almoça sozinho, no apartamento de três quartos. Para quê? Uma alma em três aposentos?

Liga a TV, no horário de meio-dia. O sol a pino colore as árvores da rua. A mesa, ao lado da janela, é um camarote para uma bela visão. Seu bairro, com frondosas árvores e prédios arrojados. A comida no prato aguarda para ser tocada. “Hum, um bife de picanha não é para qualquer um”.

O noticiário se desenrola sem cerimônia. Não pede licença e despeja pratos bem menos saborosos que o posto na mesa. O Severino Cavalcanti renunciou. Nunca gostou dele. Só pelo fato de ter sido eleito como pirraça ao governo petista já lhe dava náuseas. Era um homem até então desconhecido, o tal Severino. Não sabia articular bem as palavras diante das câmeras.

Riu-se da ignorância do deputado pernambucano. No entanto, o manto sisudo tomou-lhe a face. Ignorante? Seria mesmo? Claro que Severino não era dos mais espertos da bancada. Seus sete meses de fama foram catapultados graças ao chamado “baixo clero”, um grupo de parlamentares, eleitos pelo sofrido povo, que jamais se destacaram, nunca honraram o mandato. O baixo clero era uma massa cinzenta, uma choldra sem rosto, sem voz, mas vivente e preocupada com o próprio umbigo. Choldra, segundo o dicionário, é o coletivo de assassinos. Titubeou diante da palavra forte. Seriam assassinos? Se o fossem, como não havia sido provado o crime?

O bife já não estava não quente. A carne, ao esfriar, torna mais vívidas as estrias. O baixo clero era de assassinos. Como podiam dormir, se no Brasil, a décima maior economia do mundo, caía para o 63º lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da ONU? Estávamos atrás do Chile, da Argentina (que viveu uma convulsão social há pouco tempo), do México (mesmo com os desmandos ofertados pelo opressor NAFTA).

A comida foi perdendo a importância, ao fechar os olhos, enrugar a testa e trazer à tona quais eram os nomes mais cotados para substituir Severino. José Thomaz Nono era um deles. Nunca ouviu falar desse. E, além de tudo, era do PFL, a sigla que quase personifica a ala mais conservadora da nossa política. Ao pensar em tantos nomes e pouca proeminência, os dedos estalavam sobre a mesa, não agitados, mas sim buscando as outras peças. Eis que se lembra de Aldo Rebelo, a figura de confiança do PT para comandar o Congresso. E as investigações acerca da corrupção no Planalto? Rebelo é do PCdoB, um partido ligado ao âmago do governo Lula. Como alguém que reza pela mesma cartilha irá conduzir as punições para os inúmeros petistas envolvidos nos logros ao povo?

A instituição, estéril pelos desmandos de Severino, não consegue o que primordialmente se propõe: legislar. A mão esquerda deixou o tilintar da mesa e escorou-se no queixo. Havia mais gente interessada no páreo. “Esse Severino já saiu sem crédito e ainda quer deixar uma criatura da mesma estirpe?”, disparou, avivando os olhos, quase cerrados. O parlamentar Ciro Nogueira, do Piauí, reunia todos os disparates de Severino, mas com idade menos avançada. Comprimiu os lábios num ímpeto de cólera. “E o petulante ainda trouxe as tais “Ciretes” para angariar votos”. Em tempo: Ciretes foram dezenas de moças, entre 15 e 20 anos, donas de curvas generosas e nenhuma convicção, que fizeram campanha por Ciro Nogueira, no Congresso.

Os outros interessados na vaga de presidente da Câmara, o terceiro mais importante cargo do Brasil, não mereciam mérito. A volúpia pelo poder atemorizava as pessoas de bem.

Perdeu de vez a fome. Estava ali, sentado diante de um bom prato, num bom aconchego. Lá fora, um bairro de classe média. Contudo, era andar poucos quilômetros e se deparar com gente simples, de sorriso sem dente, que teima em viver com salário-mínimo ou pouco mais. O governo Lula, tão distante em Brasília, arraigado em publicidade portentosa, diz que o programa assistencialista Bolsa Família está dando dignidade para milhões. Não podia conceber isso. O que R$ 10 era para ele? Era o preço de um livro, o quanto custava um lanche de noite com os amigos. E isso traria dignidade?

O noticiário não parava. As palavras soavam como alarme. Eram avalanches de dinheiro que sumiam. O Severino, o menos inteligente dos ladrões, tinha para si o tal “Mensalinho”, a bagatela de R$ 10 mil mensais. Os mais inteligentes e astutos possuíam o “Mensalão”, três vezes maior.

Foi a meia-hora mais longa de sua vida. “O país está doente”, pensou. Um metalúrgico que pouco trabalhou comandava a maior nação do Terceiro Mundo. O sociólogo, de bagagem cultural excepcional, não trouxe progresso; tratou de precipitar no ostracismo todos os livros mordazes dele, que condenavam o capitalismo tal como se apresenta.

Esqueceu o prato de vez. Os cotovelos apoiavam o rosto, que não olhava mais para a televisão. Os olhos buscavam no céu um pouco de esperança. Talvez uma solução. Mas qual? Estava ali, encarcerado no seio da burguesia. Queria até ganhar mais. Ser bem-remunerado. Dois dentro de si se digladiavam. Um achava bastante o conforto que já obtivera, já que tantos nada têm. Outro queria mais, apoiado nas falcatruas perenes nessa terra. O “outro” xingava o “um”, acusando-o de intelectualóide. “Intelectual é que gosta de pobreza”, campeava por aí. O “um” queria alterar as coisas, queria não ser mais “um”, mas parte de uma mudança radical.

Tratou de levantar. O prato, frio, perdera o viço. Pegou-o, junto com os talheres, desceu o elevador e divisou na esquina um homem deitado no chão. Depositou ali, sem palavra ou expressão, o almoço que hoje não mais lhe pertencia.