GilmarJunior

Textos de minha vida.

sábado, agosto 20, 2005

A blindagem

O segundo semestre de 2005 começou para os brasileiros com um noticiário dominado por escândalos e por esquemas outrora olvidos de corrupção. A descoberta de que o governo Lula é igual aos seus predecessores traz inquietações de ordem ideológica. No entanto, entre as vozes que protestam, há um número significativo que não credita a Lula o apodo de corrupto. O PT está imerso no espetáculo de misérias humanas, documentos do início de agosto provam que o ilmo presidente realizou saques vultosos e amigos íntimos dele enleiam-se com afinco aos planos de enriquecimento célere. A dúvida que paira sobre a intelectualidade brasileira é: de onde vem a blindagem do presidente Lula? Os índices de aprovação do governo federal, divulgados pelo IBGE na semana passada, caíram, mas ainda se mantêm em patamares satisfatórios. Mais de 30% dos brasileiros consideram a administração petista como boa ou ótima! Os jornais e os noticiários televisivos dedicam mais da metade de suas pautas aos desdobramentos das hordas de corruptos e a imagem de Lula permanece como de um amigo do povo.

Antes de avançar na dissecação do fenômeno Luiz Inácio Lula da Silva, um conceito merece uma pequena explanação: o arquétipo. O psicanalista suíço Carl Jung trouxe essa palavra, de origem platônica, para o cerne de sua teoria. Um arquétipo significa um modelo de seres, ou seja, um padrão de indivíduo que é conhecido por todos os homens e mulheres, segundo Jung. Um exemplo é como as pessoas enxergam um trabalhador operário. O proletário é visto como um homem de virtudes, incapaz de embustes em troca de favorecimentos pessoais. Reza a boa cartilha do operário que ele ascenderá por meio de sua honestidade.

O presidente brasileiro encarnou, de certa forma, o arquétipo do pobre que chegou ao ápice mediante uma conduta ilibada. No final da década de 70, quando a ditadura não assustava mais a ninguém, Lula lança mão dos microfones e palanques para tornar-se o porta-voz dos anseios de milhões de trabalhadores urbanos. Eis que surge o PT, no qual se imiscuíam pessoas realmente pensantes (e com intuitos nobres) e outras que buscavam no arquétipo de “moço de esquerda” a chance de alçar postos mais elevados.

Pelos anos 80, o nome “Lula” penetra no eleitorado. Ele enfim chega ao Congresso e, no final da década, encabeça a chapa petista rumo à presidência. As propostas eram assustadoras para a época: reforma agrária compulsória, revolução do proletariado, etc. A direita brasileira, há mais de 500 anos no poder, ficou eriçada de medo diante da virulência discursiva petista. O candidato conservador brotou lá do Nordeste. E o resto da história, o cidadão conhece.

Lula passou os anos 90 dirimindo o conteúdo explosivo e comunista do discurso petista. Isso até soaria um bom sinal, já que a idéia comunista naufragou em todos os recantos do planeta e permanece ainda em rincões comandados sob mão de ferro. A atualização do discurso petista só não surtiu o efeito desejado no pleito de 1994 devido à manobra bem-sucedida do ex-ministro da Fazenda e sociólogo Fernando Henrique Cardoso, que acabou com o mal mais perene na vida do brasileiro: a inflação. Durante alguns anos, o poder de compra do povo aumentou e os preços se mantiveram a patamares aceitáveis.

Os anos trataram de expor mais um engodo. O sociólogo esqueceu o que aprendera na faculdade e rasgou o que escrevera nos livros publicados. FHC escancarou o país ao mercado internacional, promoveu o maior desmonte do setor estatal e falou, aos borbotões, que a globalização era “boa”. Boa para quem? A globalização beneficia as instituições financeiras. Mas para os direitos trabalhistas e ambientais nem tanto.

A chance do ex-torneio mecânico – que jamais se preocupou em estudar – cristalizar-se-ia na virada do século XX. O Brasil acenava com uma mudança. As pesquisas mostravam o PT como um promissor palanque eleitoral. O discurso de Lula estava, sem dúvida, mais brando. Mas algo estranho começaria a acontecer. A aliança com o capital privado, personificada na aliança com o retrógrado PL (Partido Liberal), deixou poucos pensantes boquiabertos. Mas, com isso, o PT ganhara o aval da classe empresarial, sempre receosa em perder regalias ou em permitir concessões demais ao combalido trabalhador.

O PSDB apanhou feio nas eleições em 2002. José Serra estava cambaleando durante a disputa e buscou apoios em diversos setores sociais. Lula se apoiou no espetáculo pirotécnico patrocinado por Duda Mendonça e por vultosos valores de campanha. Um exemplo me vem à mente: quando o candidato do PPS, Ciro Gomes, decidiu apoiar Lula, o que se viu na TV foi um palco digno da Rede Globo e os dois políticos trocando sorrisos, apertos de mãos e amizade longeva.

A maior votação em uma democracia ocidental correspondeu aos anseios mais sinceros da sociedade brasileira. Enfim, um político cujo passado trabalhador (um arquétipo!) chegara ao comando da nação. A personalidade Lula, apoiada no arquétipo do pobre que venceu sem passar ninguém para trás, tornou-se celebridade. E aí começou o erro.

Enquanto Lula permanecera como personalidade, estava fora do cerne de corrupção e de intrigas palacianas. O PT se mostrou muito eficaz quando assumia a tribuna da oposição. Era o grande vigia, atividade que realizava de acordo com princípios sólidos de defesa do povo brasileiro. Para a direita brasileira, a sigla petista personificava a histeria. Para o povo, a legenda era o compêndio de anseios classistas. O fato de o partido ter entrado no jogo dos já existentes (PSDB, PFL, PMDB, etc) jogou na vala o conteúdo outrora defendido. O padre Antônio Vieira, um dos ícones do Barroco brasileiro, afirmou, em um dos diversos sermões, que “o roubar pouco é culpa, o roubar muito é grandeza”. É só olhar a maioria dos nossos partidos. Entretanto, o “antigo Partido dos Trabalhadores” posava para sociedade como amigo do povo acima de tudo, apoiado na personalidade Lula, o trabalhador.

Lula deixou, na vida íntima, de ser operário. O único resquício da vida proletária é a ausência de um dedo. De resto, o presidente adora aviões equipados, bons vinhos e charutos importados. Só não apreendeu o hábito de boas leituras e do bom manejo da língua.

Em 2005, a mudança no PT veio à tona. Sem mais nem menos, da boca de um aliado: o petebista Roberto Jefferson. O partido que vinculou sua história aos trabalhadores se transfigurou em sede de um lamaçal. Ninguém é poupado dos esquemas descobertos quase que diariamente. No entanto, uma figura permanece ilibada: o presidente Lula.

Existe uma explicação plausível para a blindagem de Lula. Se o presidente do Brasil for jogado na lama comum dos políticos envolvidos nas falcatruas, toda a identidade do PT, que já está arranhada, seria posta no descrédito. Dirceu, Genoíno, Marta Suplicy, etc estão maculados pela corrupção. E deixam de se defender para retocar a aura de honesto do presidente do país. Eles sabem que, se o PT perder a razão de sua própria existência (a proximidade com o trabalhador), as coisas ficarão piores do que a possibilidade de serem cassados.