GilmarJunior

Textos de minha vida.

sexta-feira, março 25, 2005

Há tempos, vivia na cidade de Bogotá uma bela moça que, apesar dos anos, mantinha-se sempre jovem e bonita. Cabelos negros caíam-lhe pelas costas. Os olhos escuros como de um corvo rivalizavam com as estrelas em brilho. Qualquer pedaço de tecido denunciava curvas suaves, uma silhueta sem excessos e digna de uma escultura. Sua pele marrom era diferente da cor de outras mulheres da região; uma tez que ostentava um brilho, uma lisura incomum, sem nódoas de árdua faina. Os homens da localidade sempre buscavam chamar-lhe a atenção, mas a todos ela desdenhava. Conhecida por Mulata, a mulher era envolta em mistério e fascínio.

Porém, a fama que a bela possuía não se encerrava apenas em odes a sua insólita beleza. Contam velhas senhoras que, ao passar pela frente da casa da mulata, ouviam palavras incompreensíveis, monossílabos graves e uma luz que parecia uma fogueira ardente. A fama de que a mulher seria uma bruxa logo de dissipou pelos arrabaldes. Diziam que, em noites de lua cheia, ela recebia o próprio demônio em casa, a sala era consumida por uma luz infernal durante toda a madrugada.

Tantos adágios ruins chegaram aos ouvidos da Santa Inquisição. Chegaram à cidade, procuraram pela mulata. Prenderam-na sem resistência. A mulata deixou-se algemar, um sorriso absorto não lhe saía dos lábios. Ao entardecer, encarceraram-na numa cela escura. Seria enforcada no dia seguinte, quando o sol estivesse a pino.

Um carcereiro passava em revista pelas celas e ouve um barulho. Corre até o último cárcere e, espantado, contempla a mulher desenhando algo na parede.

- Ora essa, gasta os teus últimos minutos a desenhar? O que te passa na cabeça? – comenta o homem, girando com o molho de chaves das celas na mão esquerda.

- Oh, carcereiro, estou a desenhar um barco. O que falta a ele? – fala, em uníssono, a mulata.

O carcereiro pára de mexer nas chaves, encosta-as junto ao corpo e, ríspido, dispara:

- Infeliz, repensa tudo que já fizeste. Se não tiveste de desviado do caminho da luz, não estarias a ponto de morrer!

- Então, responda jovem carcereiro. O que falta ao meu barco? – insiste a moça, sem se alterar ante ao descontrole do homem.

- Falta-lhe o casco.

- Se assim falta, ele o terá. – vira-se a mulher, deixando o jovem sem ação.

O carcereiro saiu confuso. A mulata continuava a desenhar.

Ao amanhecer, o patíbulo já estava pronto para a cerimônia da forca. Começavam a se amontoar pessoas na praça central, ansiosos pela condenação da bruxa. Na prisão, o carcereiro foi inspecionar as celas e o espanto ficou redobrado ao ver a mulata ainda no desenho do barco.

- Meu Deus, há de ter piedade dessa alma desgarrada. O que pensas da tua vida? Arrepende-te dos pecados e ainda poderás ser salva!

A mulata, no entanto, tinha a mesma serenidade da noite anterior, e perguntou, quase em um sussurro:

- Carcereiro, o que falta ao meu barco?

- Tua alma queimará no inferno, sem descanso, berrava o jovem. Sentando próximo às grades, enxuga o suor da testa e fala:

- Faltam-lhe as velas! – disse o homem, levantando e dirigindo-se para o corredor, balançando a cabeça.

Chegou enfim o meio-dia. O carrasco já estava no patíbulo, a multidão não arredava o pé do local. Fazia muito tempo que a cidade não se mobilizava pela pena de morte. As bruxas andavam raras por aquelas bandas.

O carcereiro, com as chaves na mão, dirige-se para a cela da mulata. Seus olhos esbugalham-se ao contemplar o desenho do barco pronto. A mulher, com sorriso enigmático, indaga-lhe:

- Então, jovem carcereiro, o que falta a meu barco?

- Entrega tua alma ao Senhor e ainda poderás ser salva! Teu barco está perfeito, só lhe falta navegar.

- Se assim for, se nele eu puser empenho, assim será. – disse a mulata, mostrando a ele os dentes alvos como a neve.

- Como assim, mulher?

Num átimo, a mulata pula para dentro do barco, que começa a mover-se. De início lentamente, depois acelera até desaparecer em um dos cantos da cela suja. O carcereiro, boquiaberto, fica no local durante minutos até se recompor. Sai correndo e conta a todos o ocorrido. Ninguém jamais ouviu falar da mulata novamente. Os mais idosos batem no peito e rematam:

- A desgraçada deve estar rindo às nossas custas, ao lado do Diabo!