GilmarJunior

Textos de minha vida.

sábado, fevereiro 12, 2005

O palco é da Coréia do Norte - por Gilmar em 11 de fevereiro de 2005

No dia 10 de fevereiro de 2005, o Ministério das Relações norte-coreano divulgou, de forma oficial, que o país detém arsenal nuclear. O anúncio coloca um basta à paralisação de cinco meses de negociações entre a Coréia do Norte, EUA, Japão e União Européia, cujo objetivo é livrar o mundo de uma ameaça de hecatombe nuclear.

A Coréia do Norte fez seu preocupante comunicado em um momento tênue da geopolítica internacional. Os EUA ainda não sedimentaram a construção da democracia no Iraque. O Irã apareceu nos noticiários como uma pedra no sapato, de tamanho considerável, nas ações americanas. E o pequeno país asiático coloca mais lenha na fogueira. As análises primárias dessa conjuntura podem deduzir que o presidente George W. Bush não errara ao mencionar a existência do “Eixo do Mal”.

A classificação de países entre o bem e o mal, no entanto, é uma prática de uso freqüente. O centro hegemônico sempre se arvora como o detentor das virtudes e aqueles que se contrapõem aos seus desmandos logo é tachado como subversivo ou com léxicos menos atraentes. O caso ainda recente do Afeganistão pode ilustrar essa idéia maniqueísta de mundo. Em 1979, tropas da União Soviética invadiram Cabul. O país foi tomado por um governo de orientação comunista e ateu. Em uma época de guerra fria, os EUA logo acionaram contatos em território afegão. Um xiita chamado Osama bin Laden foi armado até os dentes com os mais poderosos artefatos bélicos ocidentais. Segundo o jornalista uruguaio Eduardo Galeano, Osama encarnava o bem, em uma cruzada iminente contra as forças do mal (ou soviéticas, no entender ianque). Até mesmo um relógio de ouro, de procedência norte-americana, dava um brilho todo especial ao pulso de bin Laden.

Expulsos os soviéticos a partir de 1988, o grupo de bin Laden implantou no Afeganistão uma ditadura teocrática, o Talebã. O país permaneceu um dos mais pobres, conforme dados da ONU. Mas a criatura se voltou contra o criador e, como um corvo, tentou arrancar os olhos de quem lhe dera a vida. Os atentados de 11 de setembro de 2001 foram o sinal palpável de que a linha entre o Bem e o Mal pode se modificar. O sociólogo alemão Robert Kurz ressalta que os islâmicos são hoje obras do “demônio” pela visão dos EUA e que a recíproca também é forte e verdadeira. Esse reducionismo, que de todo não é falso, mostra que uma sociedade capitalista, na busca incessante por novos rumos que impeçam a desagregação do modo produtivo, tem de buscar o inimigo comum e confeccionar uma política externa da luta entre as forças do bem contra o mal. Entre os anos 50 e 80, a ex-União Soviética era o inimigo ideal. Os governos estadunidenses não almejavam aniquilar a URSS. O cenário era perfeito: o choque de ideologias e a ameaça de um holocausto nuclear atendiam a ambos. Uma série de países satélites gravitava em torno das duas superpotências, consumindo tecnologia e influência que elas tinham tanto a dar.

Mas o caso dos “radicais” islâmicos atesta que o inimigo comum fugiu do controle. A destruição das Torres Gêmeas não estava no script desse filme há tanto reprisado. Talvez, a produção ficcional de Hollywood tenha se imiscuído na mente da al Qaeda, para promover uma cena digna de um filme como “Independence Day”: o aniquilamento de um símbolo de pujança norte-americano. A derrocada do socialismo destruiu o embate Washington-Moscou e toda a comodidade que isso trazia. E os EUA procuram um alvo que seja inofensivo e que entre nesse jogo.

O Iraque também não convenceu como inimigo comum, devido à presença do ouro negro no subsolo do país. O deposto e ex-ditador Saddam Hussein também fora uma pessoa benquista nos meios da CIA. A guerra entre Irã e Iraque, entre 1980 e 1988, não foi lucrativa para nenhum dos envolvidos, mas direcionou muitas armas oriundas dos EUA para o regime de Saddam. O sucesso da Revolução Islâmica no Irã, sob a égide do aiatolá Khomeini, trazia o germe de que governos nacionalistas árabes pudessem se espalhar pelo Oriente Médio. Uma briga de fronteiras foi o estopim para que os EUA tentassem derrubar Khomeini e toda sua trupe. E um conflito de oito anos não trouxe benesses para lado algum, mas dotou o Iraque de tanques e de um efetivo de mais de um milhão de soldados.

A desmobilização do exército iraquiano geraria uma onda gigante de desemprego. O país também contraiu uma dívida externa considerável, US$ 80 bilhões, graças às belicosidades com o vizinho Irã. Em agosto de 1990, Saddam invade o Kuwait, na tentativa de salvar a economia do Iraque. O enredo novamente mudou: de um valoroso trampolim para desestabilizar o governo iraniano, Saddam passou a ditador, a um cruel e sanguinário governante. Era notória a participação dos EUA, na luta pela liberdade do povo iraquiano. Bombardeios foram autorizados pela ONU e a infra-estrutura do Iraque foi ao chão. Se o Kuwait fosse anexado pelo Iraque, o país de Saddam disporia de uma boa fatia do petróleo mundial, podendo decidir até a prática de preços. Seria, quiçá, a reedição da crise do petróleo em 1973.

A guerra terminou, mas não o ensejo norte-americano de provar que ainda era o xerife deste pobre planeta. Saddam continuava lá, impondo autoridade a pobres xiitas por meio de um governo ateu. Ainda, no início dos anos 90, comentava-se muito sobre a possível decadência dos EUA e isso alarmava a sociedade mais consumista do mundo. A missão ianque ainda não estava completa.

Alegando o pretexto de proliferação de armas químicas e nucleares em solo iraquiano, o inteligente, perspicaz e astuto presidente George W. Bush patrolou, a la cowboy, o veto da ONU a mais um conflito de grandes proporções e lançou-se a uma megaoperação no Oriente Médio. As ações da General Dynamics, da Lockheed e outras indústrias bélicas subiram vertiginosamente em Wall Street.

Mais mortes, de crianças inocentes e de homens e mulheres que apenas passavam, tornaram-se um mal necessário. Em 12 de maio de 1996, antes da última peripécia do menino Bush, a chanceler Madeleine Albright havia defendido as sanções impostas ao Iraque pelos EUA, cujos efeitos inibiam qualquer desenvolvimento da economia iraquiana. O povo pagava a pesada conta, com carestia, miséria e mortes. Questionada sobre a morte de meio milhão de crianças iraquianas em virtude dos embargos, Albright foi categórica ao afirmar que todo o esforço norte-americano em arruinar o regime de Saddam vale a pena.

E o filme, com roteiro já gasto para o resto do mundo (mas não para parte da população norte-americana, que reelegeu o Sr. Bush), contrapõe bem e mal. Quem sabe o governo dos EUA tenha recebido a visita de algum anjo, que desferiu uma missão tão complicada para eles: a salvaguarda da paz no planeta. Saddam, enfim, foi deposto. O ódio, porém, não terminou. O Iraque virou um faroeste atualizado em pleno Oriente Médio: uns tiros ali, uns homens-bomba acolá e assim o país esquece o que é rotina, o que é vida.

O mundo vai caminhando para corroborar a máxima de que o homem é guerreiro por natureza. Eis que a nossa Coréia do Norte, perdida em uma pequena península ao norte da China, quer os holofotes sobre si. Mas será um inimigo do mesmo porte que Irã, que realmente conta com ingredientes mais explosivos: armas, religião e petróleo?

Um grande jornalista e amigo me disse que a Coréia do Norte atua como o bobo-da-corte nesta enésima reedição do filme bem contra o mal. O país não tem condição de ter uma economia digna do nome e ainda bravata que possui arsenal nuclear. Deve ter um programinha de armas bem simples, nada que estoure alguns quarteirões. Mas cai como uma luva esse anúncio de terror. O presidente Bush e toda sua cúpula não esperavam um presente melhor: um inimigo que não morde, mas que late muito. Esse alarido todo vai dar respaldo às bases dos EUA no Japão e na Coréia do Sul, que vinham recebendo pressão para se mandar dali. Mais uma vez, o script encontra sobrevida. Até quando, não tenho prognóstico no momento.

Em 1995, a American Psychiatric Association publicou um informe que versava sobre as características comuns a todos os criminosos. O traço mais típico neles é a inclinação para a mentira. E, cinqüenta anos antes, uma mesma plêiade de psiquiatras diagnosticou que os delinqüentes eram incapazes de aprender com as próprias experiências. Em um grau maior, os EUA serão um bando de desordeiros? O presidente Bush confunde sua origem texana – o legendário cowboy – com a incapacidade de tirar alguma lição dos próprios enganos?