GilmarJunior

Textos de minha vida.

quarta-feira, fevereiro 23, 2005

O esquecido conflito no Sudão – 22 de fevereiro de 2005

No começo de 2004, uma ONG francesa chamada Médicos Sem Fronteiras divulgou um relatório, no qual elencava as dez grandes tragédias humanitárias que a mídia norte-americana cobriu muito mal ou praticamente ignorou. É a sexta edição do documento, que contemplou, entre outros, o conflito russo na Tchetchênia e as guerras civis no Congo e no Burundi.

A displicência da imprensa dos EUA pode ser estendida, de certa forma, ao Brasil. Aqui, o jornalismo que grassa na maioria dos veículos é considerado tributário da potência planetária. A busca por um conceito difuso de objetividade, desembocando na ditadura do texto curto e da camisa-de-força do lide, é a prova de que profissionais brasileiros e estadunidenses pressupõem que tratam a todos com parcimônia e igualdade. Leso engodo.

A maioria da cobertura jornalística, em especial na Editoria de Mundo, segue a cartilha da supervalorização dos fatos nos centros de poder, em detrimento das vastas regiões empobrecidas do planeta. O brutal que acontece nos EUA é logo visto como produto de uma sociedade industrializada. O um fato similar em um país africano, por exemplo, leva a pecha de conflito irracional.

O caso das hostilidades na região de Darfur, no Sudão, ilustra o referido. Ao tomar conhecimento das mortes nesse país, grande parte da comunidade internacional (leia-se o seleto grupo de países europeus e os EUA) tratou de endossar o conservadorismo político vigente. A culpa primeira recaiu sobre a ONU, que se mostra mais uma vez incapaz de dirimir as catástrofes humanitárias. Em seguida, o reducionismo toma forma: essas belicosidades não passam de embates de ordem civilizacional, por se tratar de uma guerra inevitável em uma área de fronteira do mundo islâmico.

O desenrolar desse acontecimento me fez analisá-lo, antes de o descartar da pauta diária. Na época, trabalhava no jornal O Sul, o mais recente diário de Porto Alegre (RS). Li tudo que me saltava à vista sobre Darfur, suas condições geográficas, além da conturbada história do Sudão. Fui ter com o editor-chefe, para darmos o merecido destaque ao fato. Qual não foi minha surpresa quando o suposto líder da redação atirou as folhas que eu havia separado religiosamente e, com desdém, disparou: “Ah, conflito de negro não é importante”. Tentei argumentar, mas tamanha visão preconceituosa sabotava minhas tentativas, que soavam, segundo ele, “humanitárias demais (sic)”.

Sentei na minha mesa e fiquei a divagar. Os noticiários das maiorias dos veículos impressos e digitais não conseguiam acabar com meu mal-estar. Conflito de negros soava retrógrado demais. Porém, não se faz quando o centro do poder não quer ver. Passei, então, a buscar informações sobre isso.

Ao contrário do que se imagina, o conflito em Darfur não possui uma matriz religiosa, respaldada na expansão do islamismo ao Sul do Saara. O Sudão está há 21 anos afetado por uma guerra que contrapõe o Norte muçulmano (onde se localiza Darfur) e o Sul cristão-animista. Mas Darfur tem seus próprios ingredientes para a emergência de uma nova peleja. Os que se matam aí são muçulmanos, mas o âmago das agressões reside na diferença étnica dos habitantes da área. A violência coloca em lados opostos as tribos africanos autóctones, que praticam uma agricultura de subsistência e são sedentários, e as comunidades islâmicas, nômades e praticantes da pecuária itinerante. O choque de estilos de vida diferentes recrudesceu face ao agravamento da desertificação no Sahel, uma área de clima semi-árido que bordeja o deserto do Saara, a partir dos anos 80. O meio ambiente se degrada e as populações, em vez de buscar a união para sanar o problema, armaram-se para o inevitável choque.

A disputa armada por terra e água fez o governo sudanês esboçar alguma atitude. A reação, no entanto, orientou-se pelo favorecimento da população árabe, que é majoritária no Sudão, mas perde em Darfur para as comunidades africanas. Uma guerra suja, que lembra alguns requintes da praticada por Slobodan Milosevic na Sérvia, é a saída encontrada por Cartum, que aos olhos do mundo buscar dar um basta ao problema. As etnias africanas Fur, Massalit e Zaghawa são as mais vitimadas.

Quanto à incapacidade da ONU (estendida ao secretário-geral Kofi Annan) com os problemas mundiais, isso serve apenas para dar legitimidade à política unilateral dos EUA em invadir países onde a liberdade (outra palavra prostituída pelo uso indevido) esteja ameaçada. O “grande” país da América do Norte dificulta a ação do órgão ao criar obstáculos diplomáticos no Conselho de Segurança, o responsável direto pela aplicação de planos de paz. O genocídio de etnias rivais em Ruanda contou com o fomento secular de potências européias, que incutiram o ódio e a rivalidade nos tutsis e nos hutus. A ONU nada pôde fazer, e a missão criada para promover a paz se tornou apenas um órgão títere.

As Nações Unidas, entretanto, não estão isentas de culpa. O caso de Darfur foi primeiramente avaliado como explosão de ódios seculares e não como um genocídio muito bem orquestrado. Em seguida, Annan recomendou ao Conselho de Segurança o envio de uma missão de reconhecimento e de preparação para operações de paz, em junho de 2004. Como sempre, a medida passou pelo crivo dos grandes mentores deste planeta. Uma tímida ajuda foi despachada e Darfur sumiu do noticiário. Seria o fim de mais um exotismo do Terceiro Mundo?

Os grandes Estados mundiais assistem ao espetáculo tétrico, que ainda acontece de forma esporádica, mas ceifando vidas. O petróleo no Sul do Sudão continua incólume e a serviço dos ricos. A televisão mostrou acampamentos de africanos em constante fuga das tropas árabes. Quatro milhões de sudaneses passam fome, de acordo com dados de 2004 da Enciclopédia Larrouse. Não obstante, permanece o status quo do país africano: um mero fornecedor de matéria-prima para os ditos países civilizados.