GilmarJunior

Textos de minha vida.

sábado, fevereiro 19, 2005

GALEANO E SARAMAGO PROPÕEM UM MUNDO QUIXOTESCO

O Fórum Social Mundial de 2005 trouxe, como de costume, inúmeros personagens de renome da esquerda mundial para Porto Alegre. Mas dois nomes, por si só, deram uma nova guinada às discussões por um mundo melhor. Eles escrevem crônica, ficção, romance e contos, com a densidade de ensaios de política e filosofia. E, por isso mesmo, foram recebidos no FSM com a ovação tradicionalmente destinada a ídolos da música ou do cinema, com direito à fila de centenas de metros, gritos e urros diante da lotação além da conta do Auditório Araújo Vianna, na manhã de sábado de 29 de janeiro deste ano. A palavra ao vivo de José Saramago e Eduardo Galeano foi consumida com fervor na mesa-redonda Quixote Hoje: Utopia e Política, da qual participaram também Ignacio Ramonet, Frederico Zaragoza, Luiz Dulci e Roberto Savio.

Galeano, autor de As veias abertas da América Latina, esteve em edições anteriores do evento e sempre provocou rebuliço. Da primeira vez, em 2001, o direito de entrar no teatro do prédio 40 da PUCRS para assistir a suas palestras foi disputado a tapa, uma curiosa contradição ao espírito da não-violência. O público extra se acomodou no palco, cujo era pequeno demais diante da necessidade tão grande e tão urgente de ouvir alguma voz amiga na contracorrente do neoliberalismo. Saramago veio pela primeira vez ao megaevento que Ramonet comparou, com humor, aos “jogos olímpicos da crítica da globalização” ou “férias sociais mundiais”.

Cavaleiro endividado

“Quixote estava preso por dívidas, como nós da América Latina estamos”, disse Galeano, referindo-se ao “anti-herói de dimensões heróicas” de Miguel de Cervantes, inspirador do encontro. Para fornecer provas de que existe um outro mundo sendo gestado na barriga deste – quem sabe uma espécie de contramundo da infâmia -, o escritor contou a história de Vargas, um pintor analfabeto e talentosíssimo que conheceu na Venezuela.

Vargas vivia num povoado escurecido pela exploração do petróleo, um lugar tão feio e fétido que lá o arco-íris era preto e branco e os urubus voavam de costas. Mesmo assim, ele pintava flores, árvores e aves enormes cujo colorido humilhava as pranchetas mais ricas, discorreu ele. “Eu disse aos meus amigos que Vargas era um pintor realista, ele pintava a realidade que não existe, mas de que se necessita”, disse. O não-lugar da etimologia da palavra utopia, lembrou, pode ter lugar nos olhos que ainda não enxergam esse lugar, mas o adivinham.

A não-utopia

Galeano sequer usou os 15 minutos a que tinha direito. De certa forma, deu a deixa para o final da fala de Saramago, que logo apresentou como má-notícia para a platéia o fato de ele não ser um utopista. Para o primeiro Nobel de Literatura de língua portuguesa, “o único lugar que existe é o dia de amanhã, a nossa utopia é fazer alguma transformação já”. Não há tempo, explicou, para gastar em discussões e movimentos de mobilização que resultarão em alguma melhora na qualidade global de vida somente em 2043 ou, pior, daqui a 150 anos. “Quem nos garante que no futuro as pessoas estarão interessadas naquilo em que agora estamos?”, ele provocou, sugerindo menos retórica e uma revisão rigorosa nos conceitos da esquerda. “Para as cinco bilhões de pessoas que vivem na miséria, utopia é nada”.

Os palestrantes fizeram cada um a sua leitura da personagem de Cervantes, nascida na Espanha no século XVII, viva e reciclada ao longo de 400 anos. Zaragoza destacou a busca do impossível e a visão distinta da realidade do cavaleiro andante. O diretor da Unesco também citou a tese do prêmio Nobel de Física, Ilya Prigogine, de que é necessário calor para provocar as reações. Ramonet, diretor do Le Monde Diplomatique, questionou a suposta loucura de Quixote.
“Aqui há quixotes e quixotas, mas não estamos loucos”, garantiu. Segundo o jornalista e semiólogo francês, Quixote não era um fanático da sociedade ideal, e seu desajuste com a vida real consistia na disposição de não suportar injustiças. Ele pensava ser possível ter um mundo diferente, mas não tinha programa nem manual de instruções. Mais ou menos como se encontram hoje, quatro séculos depois, milhares de altermundistas, os “batalhões de quixotes” a que se referiu Ramonet.

Persistência para o ridículo e a derrota

Galeano preferiu destacar na personagem imortal da literatura um talento também persistente para o ridículo e a derrota. Saramago sugeriu a tese de que Quixote fez um truque: declarou ser louco, sem sê-lo. “No fundo ele era um pragmático”, arriscou, num dos vários momentos da manhã em que a ironia e mesmo a gozação pareciam preencher os espaços do auditório.
“As palavras são umas desgraçadas, fazemos delas o que queremos”, afirmou o romancista. “Veja a política, por exemplo. Eu já disse que a política é a arte de não dizer a verdade, ela falseia, deturpa, condiciona e manipula”. Saramago fez essas declarações em seguida à fala do único político na mesa, o ministro Luiz Dulci, também o único palestrante vaiado (e igualmente aplaudido) pela platéia.

A presença de um integrante do governo Lula, que declaradamente tenta levar o conceito de utopia para a prática política, provocou tensões interessantes num evento marcado pela troca amistosa de frases de efeito. À observação de Saramago, de que a democracia representativa é uma farsa, afinal nela, a escolha possível, por meio do voto, é muito limitada (retirar do poder alguém de que não se gosta e colocar em seu lugar alguém de que talvez se vá gostar), Dulci rebateu com a execução do Orçamento Participativo em administrações petistas. O chamado OP foi justamente a experiência radical de aplicação e controle dos gastos públicos que trouxe o FSM para Porto Alegre, iniciada ainda nos primeiros meses da administração de Olívio Dutra na prefeitura, em 1989, quando os recursos em caixa estavam zerados. Quixotismo, naquela época, era eufemismo. A lembrança acendeu uma homenagem comovida de Galeano: “Essa cidade deu lições ao mundo de democracia participativa. Obrigado, Porto Alegre!”

Transformação

Diante dos vários autores famosos citados pelos palestrantes na esteira da obra de Cervantes (Fernando Pessoa, Bernard Shaw, Manuel Bandeira, Thomas Morus entre outros), Saramago voltou à carga, na hora das perguntas, redobrando a ironia: “Atenção, atenção, muita atenção”, anunciou. “Muita atenção porque eu vou pronunciar uma frase histórica”. E lá veio ela: “O que transformou o mundo não foi uma utopia, foi uma necessidade”. O Nobel de Literatura logo esclareceu que a frase não era de alguém famoso, era dele mesmo, inventada ali na hora.

Alguém poderia contrapor que utopias e necessidades são a mesma coisa, e que uma negativa entre elas é apenas mais uma palavra desgraçada. Tanto faz. Para Saramago, a necessidade mais urgente é discutir a democracia, que está por aí, incólume em um altar, de quem não se esperam mais milagres. “A democracia hoje está seqüestrada, amputada. É o capital financeiro que governa o mundo, e ele não foi escolhido pelos povos”, apontou.